Conversa entre um segurança e uma funcionária genérica do Pão de Açúcar:
— Sabe qual é um grande erro da humanidade? — ele pergunta — Falar mal de viado e travesti.
— Eu não tô nem aí, cada um faz o que quer.
— É tudo filho de Deus. E quando você fala, isso volta. Um amigo meu mesmo: falava mal de viado, e o que aconteceu? O filho dele nasceu viado. Virou viado aos doze anos de idade.
— Isso aí a pessoa nasce assim, não tem jeito.
— Viado, travesti, tudo filho de Deus. É homem, só que queria ter nascido mulher. Queria ser mulher, mas Deus não permitiu. Aí vira viado. Tem que respeitar.

Na década de 60, meu pai ganhou esse relógio do patrão dele, o dono do Hotel Ca’d’Oro. Ele teve vários outros relógios depois desse, inclusive um que eu dei de presente, mas mantinha o primeiro relógio bem guardado dentro do bolso de um paletó que não saía do guarda-roupa. Meu pai me ofereceu esse relógio durante minha vida toda. Meu relógio quebrava, era roubado ou perdido, e lá vinha Seu Lindauro: “Por que você não usa aquele meu relógio?”. Eu sempre recusava, claro. Era um relógio “de velho”. Pra que usar relógio de tiozão se eu tinha um relógio digital que acendia luzinha, com doze musiquinhas de alarme, ou um Champion com sete pulseiras coloridas?
Eu fui ficando velho e meus relógios começaram a ficar cada vez mais parecidos com o velho Omega. Passei a gostar do relógio do meu pai, mas ainda não o queria, agora por outros motivos: ele podia ser roubado, eu podia perdê-lo, sei lá. Então ele foi ficando lá no bolso do paletó.
Nas semanas seguintes à morte do meu pai, eu ia fuçar nas coisas dele sempre que podia. Achava um bilhete, uma lista de compras, cartões que eu e meus irmãos fizemos para ele no Dia dos Pais. Um dia me lembrei do relógio, fui olhar no bolso do paletó e lá estava ele. Dei corda, funcionou. Fiquei tenso: deveria ficar com ele? E se meu irmão quisesse o relógio? Minha mãe me convenceu: era melhor manter o relógio como lembrança e arriscar perdê-lo do que esperar que o paletó fosse doado com relógio e tudo. Então fiquei com ele.
Dois anos depois da morte do meu pai, continuo usando o relógio dele. Não funciona direito: às vezes pára sozinho, não adianta dar corda. Depois de uns dias volta a funcionar. Preciso levá-lo ao relojoeiro, mas fico adiando. Gosto de imaginar que meu pai dá um jeito de vir à noite e fazer uma gambiarra no relógio. Nada definitivo, claro. Não era do feitio dele.

*   *   *

Domingo eu fui à casa da minha mãe. Estava na sala e vi um vulto passar lá fora. “Vixe, é meu pai vindo pro almoço”, pensei — de brincadeira, claro. Não acredito em espíritos.
Fui até a cozinha e o Rafael, meu sobrinho de dois anos de idade, me pegou pelo pulso, olhou o relógio e perguntou:
— É do vovô?
— É sim, Rafa. Mãe, como esse moleque sabe que o relógio era do pai?
— Você deve ter contado pra ele, Marco.
— É verdade.
Acho que minha mãe também ficou na dúvida, porque perguntou:
— De qual vovô, Rafael?
— O que tá lá fora.
Na segunda-feira, o relógio parou de funcionar de novo.

Meu sobrinho Rafael


 

TOC é uma merda.
A película de proteção do meu celular estava muito suja, então resolvi usar o bicho sem película — que se fodesse. Vai daí que a tela começou a ficar cheia de marcas de dedo e aquilo foi me comendo a alma. Comprei uma película nova o Mercado Livre e, enquanto ela não chega, achei melhor comprar um limpador de LCD; um negócio besta que custa 15 reais e traria paz à minh’alma. Então saí de casa hoje de manhã para ir até a Kalunga.
Cheguei muito perto de entrar na loja. Estava sinalizando para entrar no estacionamento, um cara que estava parado no meio-fio abriu a porta de repente, bati. Lá se foram pára-choque, farol, retrovisor e duas portas amassadas. O cara é motorista de uma transportadora que — vejam! — NÃO TEM SEGURO. Entre conversa, telefonemas e delegacia, quase duas horas para resolver tudo. O motorista assumiu a culpa; o patrão dele ainda não aceitou muito bem.
Amanhã levo o carro para fazer vistoria e depois vou deixá-lo uns dias na oficina. A franquia custa dois mil e setecentos reais. Perdi tempo, vou ficar sem carro, vou gastar minha pouca paciência indo atrás do sujeito pra me pagar, provavelmente vou acabar apelando para uma ação judicial que vai levar sei lá quanto tempo.
E a tela do celular continua cheia de marca de dedo.

A ansiedade é uma bicha histérica que mora dentro de mim e tenta o tempo inteiro tomar o poder dentro da minha cabeça. Qualquer coisinha que aconteça desperta a bicha. Bastou um comentário que não entendi, um olhar meio torto, um rumor sem comprovação e pronto: lá vai a bicha dar piti. “VAI PERDER O EMPREGO, BOFE! O QUE VOCÊ VAI FAZER SEM EMPREGO?” “GENTE, E ESSAS MANCHA NAS SUAS CANELA? É CÂNCER, ISSO AÍ! VAI MORRER DE CÂNCER NA CANELA!” “TÁ TODO MUNDO MORRENDO E VOCÊ É O PRÓXIMO, BI!” “TRINTA E SETE ANOS! TRINTA E SETE! CREDO!” E por aí vai.
Quando a bicha começa a dar piripaque é um inferno. Ela grita, ela sapateia, rodopia, e eu não consigo pensar, não consigo trabalhar, não consigo dormir. Ano passado a tresloucada conseguiu me paralisar de vez: tive uma crise de pânico, fui atrás de especialistas, me deram remédio pra tomar. No começo desse ano, percebi que o remédio me deixava estranho. A solução do médico foi dobrar a dose, o que me deixou duplamente estranho.
Porque, vejam, o remédio não exorciza a bicha. Na verdade a merda do remédio nem cala a boca da bicha. O que ele faz é envolver a bicha em algodão, plástico bolha e plumas (o último item só para agradar a feladaputa) e abafar a voz dela. Ela continua tendo suas crises, só que eu estou como que longe dela, alheio a ela, não consigo ouvi-la direito. Mas ela está lá e passa sua mensagem de alguma forma. Quando algo que seria perturbador me acontece, eu penso: “putz, se não fosse o remédio eu ia estar arrancando os cab… as unhas agora”. Só que eu passo o dia desconfortável (sem nem estar menstruado) e durmo mal. É a bicha lá, toda embrulhada, dando um jeito de mandar sua mensagem com mímica, código Morse, sei lá.
Eu até nem acharia tão ruim se fosse só a bicha. O problema é que o remédio não faz isso só com a ansiedade. É meio que a mesma coisa com qualquer sentimento, emoção, sensação ou veadagem. “Olha, uma pizza.” “Olha, uma frase de um livro.” “Puxa, uma música.” “Uia, Scarlett Johansson pelada em cima da mesa dançando Cara-Caramba-Cara-Cara-Ô.” Tudo parece alheio a mim, tudo está longe, e eu também não me importo. Estou feliz. Olha como sorrio, estou feliz. Muito feliz. Nossa, que alegria. Jeová me segure, que assim eu não agüento tanta alegria. Vou rir. Tô avisando que eu vou rir, hein? Tô sentindo a risada vindo. Prepara aí. Prepaaaaaaaaaaaraaaaaaaaaa…
Rá.
É muita alegria. Uau.
Então por minha própria conta (porque o médico é só um emissor de receitas cor-de-rosa mesmo) voltei à dose original do remédio. Comecei ontem, deve levar um tempo ainda pra fazer alguma diferença. E espero que faça diferença, porque nem eu me agüento mais. Tem horas que dá até saudade da bicha histérica.
 

Já explico o chuveiro

Assim que eu e Ana Carlota nos casamos, comprei um chuveiro invocadão — que não é esse aí da foto. Era muito bom, o chuveiro. Saímos do Arouche, viemos para o meio da colônia armênia, o chuveiro veio junto. Não agüentou nem dois anos: casa antiga, fiação antiga, um dia o chuveiro deu um pipoco e morreu. Comprei outro (que também não é o da foto) e fui instalar. Tudo certo até eu ter a infeliz idéia de mudar o lugar do suporte do chuveirinho. Furei a parede e, claro, acertei um cano.

Foi um furdunço: gritei pra Ana vir me ajudar, ela ficou tampando o furo com o dedo enquanto eu pegava uma escada para fechar o registro. Fiquei puto (eu fico muito puto quando faço alguma cagada, o que significa que eu vivo puto), andando de um lado pro outro pela casa pensando numa solução. De repente, eureca!: peguei um parafuso mais ou menos da largura da broca que tinha furado o cano, enrolei o bicho em veda rosca e meti o parafuso no furo da parede. Abri o registro e só saiu um fiozinho d’água por baixo da cabeça do parafuso. Com essa gambiarra, conseguimos tomar banho por dois dias, até que o encanador veio e consertou a burrada. No dia seguinte, fui comprar outro chuveiro — que, claro, não é esse aí da foto.

— ENTÃO QUE PORRA É ESSE CHUVEIRO AÍ DA FOTO, DIABO?

Ora, o título do post é “O Rei da Gambiarra”. Vocês não acharam que eu ia mesmo me autointitular rei de qualquer coisa, né?

Enquanto eu transformava o parafuso num mini-craque de múmia, lembrei do meu pai. Ele sim era o rei da gambiarra. O chuveiro da foto está na casa da minha mãe. Eu mesmo o comprei no Mappin em 1994 ou 95; paguei 180 reais. Era o chuveiro mais metido a besta da época.

O chuveiro antigo já estava nas últimas. Era um daqueles Lorenzetti de metal, sabe? Então. O cano do chuveiro ficava cada dia mais torto, tínhamos medo de que um dia caísse na cabeça de alguém. Até que um belo dia (meu pai falava muito isso, “até que um belo dia”) Seu Lindauro fez um furo no teto, enfiou um gancho no furo, passou um arame pelo gancho e amarrou a outra ponta no chuveiro. Chuveiro reto, problema resolvido. Só não estava lá muito bonito, então eu comprei esse chuveiro novo e meu pai se encarregou da instalação.

Ah, meus amigos, que gênio era meu pai… Ele se fechou no banheiro com o chuveiro novo e sua infalível maletinha de ferramentas. Dali a pouco saiu para buscar alguma coisa e eu fui espiar para ver como andava a instalação. O chuveiro já estava na parede, só que meio bambo. Seu Lindauro voltou, se fechou de novo. Quando saiu, todo orgulhoso, o chuveiro estava instalado e bem preso, graças a duas tampinhas de Coca-Cola que ele usou como calço.

Esse banheiro da casa da minha mãe deve ser o cômodo que mais viu as gambiarras do velho. Antigamente, o piso do banheiro era de granito branco e tinha uma rachadura que ia da porta até quase a parede oposta. O tempo passou, a fenda foi aumentando, minha mãe perdeu a paciência: “Lindauro, a gente precisa arrumar esse piso”. Agora vejam: na cabeça da minha mãe, “arrumar esse piso” era quebrar tudo, ver se tinha alguma infiltração, refazer o encanamento se necessário, instalar piso novo. Na cabeça do meu pai, era muito mais simples. Ele se fechou no banheiro (com a malinha, claro) e saiu lá de dentro radiante. Tinha preenchido a fenda no chão com Durepóxi. Ficou feio pra danar aquela tira cinzenta no meio do piso branco. Antes que minha mãe reclamasse, meu pai já foi avisando que ainda não estava pronto. Saiu, voltou, se fechou de novo. O que ele fez? Pois é: pintou o durepóxi de branco. Gênio.

Hoje eu ando pela casa da minha mãe e em todo canto vejo as gambiarras do velho: são varais com trinta remendos, móveis consertados com arame (ele adorava arame, sempre começava a solução de um problema com a frase “Se colocar um aramezinho aí…”), fios passando por ganchos no teto (outro preferido da casa). Domingo passado minha mãe me mostrou a porta de um dos armários da cozinha. A fórmica estava descolando, ela comentou com meu pai que precisavam consertar aquilo. Ela saiu pra fazer qualquer coisa e quando voltou viu o armário “consertado”: Seu Lindauro meteu dois pregos na fórmica e se deu por satisfeito. Deve ter sido uma das últimas gambiarras dele.

Dia desses o telefone deixou de funcionar. Tentei de tudo e nada, o telefone mudo. Fui lá fora e vi meu irmão podando a primavera que ameaçava invadir a rua. Numa facãozada mais afoita, cortou o fio do telefone — um fio que passa pelo meio das plantas, entra por baixo de uma telha solta e sai na tomada do telefone da sala; gambiarra de autoria minha e de meu pai. Eu subi no murinho, fiquei lá me equilibrando e remendando o fio. Naquela hora percebi, como poucas vezes percebi antes, o quanto eu e meu irmão somos parecidos com nosso pai: desastrados, gambiarreiros.

Gosto de pensar que um dia, quando todos nós já tivermo morrido, alguém vá morar na casa que era do meu pai. Acho que esse morador futuro vai encontrar algumas soluções improvisadas dele. O cara vai ver aquilo e pensar, “Pô, mas que serviço porco”, sem saber que a gambiarra era parte da sabedoria de Seu Lindauro. Meu pai sabia que tudo era provisório e que qualquer coisa definitiva era ilusão. Sendo assim, por que gastar tempo e dinheiro com soluções definitivas? Além do mais, que chato seria se meu pai resolvesse tudo do jeito certinho: hoje eu talvez não tivesse nada para me lembrar dele. Cada pedaço de arame naquela casa é uma história dele.

Ah, e muitos anos depois da história do piso meus pais finalmente conseguiram reformar o banheiro. Colocaram piso novo, encanamento novo, louças, box, vitrô. O chuveiro mudou de parede. Meu pai instalou. As tampinhas de Coca-Cola estão lá até hoje, sustentando o bicho.

UPDATE: Olívia já foi adotada faz tempo, mas há outros cães no sítio esperando um dono.
Conheçam Olívia:

Olívia, a primeira a ser adotada


 
A Olívia foi a primeira a arrumar uma família. Agora temos uma fila de vinte cachorros precisando de dono. Calma, vou explicar.
Meu sogro tem um sítio em Mairiporã. Há muitos anos o sítio é habitado principalmente por cães. Um cachorro aparecia na porta de casa: era tratado, vacinado e levado para o sítio. Mesma coisa para cães encontrados na estrada ou, como no caso da Olívia, “esquecidos” no sítio. Na época de maior população canina, 50 cachorros moravam lá. Hoje são 27.
Só a ração pra essa cachorrada toda custa 1.500 reais por mês. É impraticável: meu sogro é aposentado; os quatro filhos ajudam como podem, mas mesmo assim é difícil. Então Ana Cartola e seus irmãos decidiram reduzir o número de cães no sítio e estão montando uma câmara de gás.
Mentira.
O projeto é trazer um cachorro por vez para São Paulo, passar pelo veterinário, dar banho, castrar e arrumar um dono. Nossa meta é ter no máximo seis cães no sítio. Com a Olívia foi fácil: quem não quer um labrador dócil? Mas há outros cães lá, alguns de raça, a maioria vira-latas. São todos cães adultos. Contamos com a ajuda de Lele Siedschlag e sua rede de contatos; sem esse povo a Olívia ainda não teria um dono. Mas vamos precisar de toda ajuda que vier.
E como você pode ajudar? De várias formas. Você pode adotar um cachorro. Você pode divulgar o blog Cães do Sítio. Você pode mandar dinheiro, claro:



Toda ajuda é bem-vinda.
 

Às 10h24 do dia 7 de fevereiro de 2002, eu clicava pela primeira vez no botão “publish” do Blogger. O texto não era nada que se dissesse “oh, que primor!” — era só eu explicando que tinha começado a escrever um blog (que eu ainda nem sabia direito o que era) para que a Bárbara, minha ex-namorada, parasse de me aporrinhar com a idéia. Eu queria manter o tal do blog por uma ou duas semanas, depois parar de escrever e falar pra Bárbara: “Ó, achei uma merda”. Dez anos depois, aqui estou eu. Que coisa.
Não vou escrever um post todo sentimental e nostálgico sobre esses dez anos. Quem eu enganaria com isso? Este blog está morre-não-morre há tempos, mal dá pra dizer que é o mesmo JMC de, digamos, oito anos atrás. Mas — MAS — eu também não posso esquecer que mudei de profissão duas vezes em quatro anos, as duas vezes por causa do blog. Não posso esquecer que conheci um monte de gente legal, que fiz festas, que consegui hospedagem de graça em todo canto.
Não tem como esquecer que uma leitora é tão louca que até aceitou se casar comigo.
Passei muita vergonha neste blog: textos sentimentalóides, posições políticas equivocadas, um ateísmo arrogante e burro que custei a largar. Mas também tenho orgulho de muita coisa que escrevi, principalmente as mais idiotas. E não posso esquecer que o JMC serviu de terapia nos momentos mais difíceis; ainda serve.
Ah, e tinha um negócio de sátira da Bíblia também. Dia desses eu retomo.
Obrigado, Alê Félix e Jaime1 — a dupla que sempre bancou a hospedagem do blog, mesmo com minha insistência (cada vez menor) para pagar pelo serviço. Obrigado aos velhos e novos leitores.
Dez anos são uma vida. Na África, mas ainda assim.
 

1Jaime, Jaime, Jaimejaimejaimejaime… Vai falando.

Este blog já vai para dez anos de existência e só agora percebo que nunca contei aqui um aspecto importante da minha vida. Finalmente criei coragem. Preparados? Pois lá vai: há anos eu venho fazendo aquilo que a imprensa chama de “travar uma luta contra o câncer”. Estou ganhando de lavada, porque até agora não tive nenhum diagnóstico oficial de câncer. Mas eu não me engano: sei que ele está lá, pronto para atacar.
Já tive câncer várias vezes na vida. Tempos atrás, tive um caso sério de câncer na língua. Mostrei para a Ana Cartola e ela me recomendou passar Gingilone. Eu passei, o câncer sumiu. Ela diz que era afta; eu digo que a ciência precisa estudar melhor a ação do Gingilone contra o câncer.
Durante a maior parte da minha vida eu não me preocupei com o câncer. Inocente, pensava que ninguém na minha família tinha morrido d'”aquela doença”. Falei isso para a minha mãe, ela riu e me contou que o pai e a avó materna dela tiveram câncer. Meu avô morreu disso. A bisavó se curou, mas depois teve varíola — que é outro medo que eu tenho (“erradicado” meu ovo), mas isso fica para outro dia.
Toda vez que tenho dor de cabeça, sei que é um tumor no cérebro. Um tumor que anda, porque a dor é sempre numa região diferente da minha vasta sobreloja. Já tive tumores nos dedos do pé (disseram que era frieira), no saco (“pêlo encravado”), no peito (“espinha”), na pálpebra direita (“verruga”). Fui tomar banho numa manhã de julho e levei um susto ao ver um tumor logo acima das minhas bolas. Era preto, todo enrugado, parecia uma uva passa.  Até eu perceber que era meu pinto, foi um deus-nos-acuda. Frio é foda. Teve uma outra vez que me apareceu uma pinta no braço. Marrom, bordas irregulares. Achei que era câncer (claro), mas sumiu depois que eu tomei banho. Era café. Tinha outras manchas parecidas na minha camiseta.
E assim venho travando essa luta inglória. Levo a vida normalmente, mas sempre esperto com o câncer, sempre com a pulga atrás da orelha. Aliás, acabo de perceber um carocinho atrás da minha orelha esquerda. É câncer, tenho certeza.
 

Lendo esse poema que Pablo Neruda escreveu em homenagem a Stálin, fico incomodado. Nem é tanto pelo cara escrever uma ode ao maior assassino em massa do século XX, quiçá da história. Não: o que me incomoda é que eu imagino o Neruda bem à vontade numa casa de praia da Ilha Negra, escrevendo cada verso enquanto olha um retrato de Stálin e mantém pelo menos um dedo enfiado bem fundo no cu.