Explico o porquê de minha contrariedade ao me ver definido como um ateu sem argumentos.
Já faz uns dias que eu e Ana fomos assistir ao excelente Millions, de Danny Boyle (Boyle é responsável por coisas díspares e muito boas como Cova Rasa, Trainspotting, A Life Less Ordinary, e por aquela porcaria com Leonardo DiCaprio, The Beach. Millions recebeu por aqui um título até que feliz, Caiu do Céu; e chega de parêntese). O filme se passa em tempos recentes, mais exatamente quando da adoção do Euro. Dois irmãos se deparam com um problema e tanto: uma mala cheia de libras esterlinas, dinheiro que deve ser trocado ou gasto rapidamente, antes que se oficialize a troca da moeda na Grã-Bretanha. Até aí, nada de mais: Danny Boyle parece gostar muito mesmo de malas de dinheiro. O que faz desse um filme belíssimo, porém, é o personagem Damian, um garoto que sabe tudo da vida dos santos, e chega mesmo a falar com eles: fala com Santa Clara, com São Francisco de Assis, com o velho pescador Pedro e com São José, pai de Jesus. O menino é daqueles personagens feitos especialmente para conquistar o público logo de cara, como na cena em que o irmão o censura por ter levado uma enorme quantia de dinheiro à escola:
— What did you bring a thousand pounds to school for? Can’t you see that’s suspicious?
— It’s not suspicious, it’s unusual.
Pois muito bem: numa cena muito tensa do filme, eu achei que o menino fosse encontrar Jesus Cristo. Senti que ia começar a chorar, que é minha reação de sempre, ateu ou não, quando se fala de Jesus, ou quando o personagem aparece num filme, num livro, num quadro. No fim das contas o encontro nem acontece no filme (para meu alívio), mas comecei a pensar no quanto eu admiro Jesus, apesar de não ir com a cara do Pai dele.
Pensando nisso, cheguei a um trecho do livro A Misteriosa Chama da Rainha Loana, de Umberto Eco. O livro é narrado em primeira pessoa por um homem de sessenta anos que perde totalmente a memória, retendo apenas o que leu durante sua vida, o que não foi pouco. Ele viaja à propriedade rural da família para tentar recuperar suas lembranças, mas só consegue mesmo reproduzir sua formação literária, musical e política, sem conseguir lembrar lhufas. Bom, não vou contar o que acontece então, mas nesse trecho que citei um personagem chamado Gragnola, um anarquista na Itália de Mussolini (pense num cabra azarado…), expressa ao jovem Yambo (o protagonista) essa minha idéia sobre Jesus:
Jesus é a única prova de que pelo menos nós, homens, sabemos ser bons. Para dizer tudo, não estou seguro de que Jesus fosse filho de Deus, como uma matéria boa assim pode nascer de um pai cuja maldade é tanta coisa que não sei explicar. Também não estou seguro de que Jesus realmente existiu. Talvez nós o tenhamos inventado, mas é justamente esse o milagre, que tenhamos tido uma idéia tão bonita. Ou talvez tenha existido, era o melhor de todos e dizia ser filho de Deus por bom coração, para nos convencer que Deus era bom. Mas se você lê bem o Evangelho, percebe que ele também se deu conta no final de que Deus era mau: assustou-se no monte das Oliveiras e pediu que afastasse dele aquele cálice, e necas, Deus não lhe dá ouvidos; grita na cruz, pai, por que me abandonaste, e necas, Deus estava virado para o outro lado. Mas Jesus nos ensinou o que um homem pode fazer para reparar a maldade divina.
E há também a ressureição, é claro. Porque, vejam, hoje em dia você dizer que Jesus ressuscitou ou não dá no mesmo, ao menos em lugares razoavelmente civilizados. Porém, quando o cristianismo começou, professar essa certeza significava ser crucificado, ou comido pelos leões, ou exilado numa ilha remota até ficar maluco ou, na melhor das hipóteses, condenado a uma prisão domiciliar perpétua, que foi o que aconteceu a São Paulo. E, apesar disso, dezenas e dezenas de homens e mulheres continuaram afirmando que o tal judeu que morrera poucos anos antes era filho do único Deus existente, e que ressuscitara ao terceiro dia. Ei, há algo de errado aí. Pensem em Pedro, por exemplo. Pedro andou com Jesus o tempo todo. Devia ser seu discípulo mais chegado, se repararmos no quanto Jesus tirava sarro do coitado. Então: quando chegou a hora do vamos ver, Pedro não titubeou em fazer todas essas afirmações perigosas. Ora, se a ressureição fora um embuste, que razão o pescador teria para manter essa posição? Será que ele estava doidinho para morrer crucificado de cabeça para baixo?
E Tiago, então? Tiago era irmão de Jesus. E quem tem irmãos sabe bem que eles não vão dar muita trela para o que você fizer. Não sei se Einstein tinha irmãos, mas vamos supor que tivesse: aposto que o irmão de Einstein achou todo aquele negócio de Relatividade, revolução da ciência, nova visão do universo e o escambau apenas “outra bobagem dessas do Albert”. Tiago era irmão de Jesus, portanto devia ser o último a se deixar convencer pela religião fundada pelo primogênito da família. E no entanto, sabem como ele saúda os cristãos em sua epístola universal? “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos da Dispersão, saudações”. Opa, aí está uma coisa que eu queria ver só uma vez: meu irmão se referindo a mim como “senhor”. Mas sabem quando isso vai acontecer? Nunca! Mesmo que um dia eu ganhe o Nobel de Literatura, ou descubra a cura definitiva para as frieiras, ou invente o moto-contínuo, meu irmão só vai olhar e dizer, “Ih, lá vem o Marco com as coisas dele”. Porque irmãos são assim, ora. Então por que Tiago não só se referia a seu finado irmão com o respeito devido a um deus, como ainda afirmou sua ressurreição, sendo levado à morte pela espada por isso? Não é normal, não é normal.
A fé que eu sustentei pela maior parte da minha vida era herdada de meus pais. Esse tipo de crença não se sustenta, e estou feliz por tê-la abandonado. Agora, porém, reconheço a possibilidade de voltar à fé por um caminho mais difícil e totalmente inesperado. E talvez não, talvez seja só minha cabeça me pregando peças. Eu sei lá. Nada no universo me leva a crer nem por um instante que exista algum tipo de deus, mas essa questão toda de Jesus Cristo me apoquenta diariamente.
Poucas páginas adiante, Yambo fala sobre Gragnola:
Seu problema era só com Deus, e devia ser um trabalhão, porque era como atirar pedras num rinoceronte, ele nem percebe e continua fazendo suas coisinhas de rinoceronte, enquanto você fica vermelho de raiva e acaba tendo um ataque.
É assim que eu me sinto. Não, não exatamente: sinto como se houvesse um muro, e que algumas pessoas dissessem que existe um rinoceronte do outro lado. Então eu apanho pedras no chão e jogo por cima do muro, para acertar o rinoceronte, o que é duplamente imbecil: se houver rinoceronte, ele nem se dá conta das pedradas; se não houver, estou jogando pedras em quê?