Historinha nova:

No começo, pareceu uma boa idéia.
“É mais seguro”, elas diziam. “Os clientes são melhores”, argumentavam. “A concorrência é menor”, lembravam. Não tinha como dar errado, então ele cedeu. Estava empolgado com a descoberta do novo nicho em um mercado tão antigo e saturado.
“Putas filhas da puta”, é o pensamento com sabor de genealogia bíblica que lhe ocupa a mente agora, enquanto caminha sob a luz dos postes na praça vazia. Nos bons tempos, a João Mendes era um jardim e todas as flores eram dele. Ele, Zelão, clássico agente do amor profissional, tinha uma carreira para se orgulhar.

Leiam mais no Pândega. Aliás, leiam, releiam, comentem, leiam outros textos (dica: A história de Belinha). Eu até comecei um capítulo bíblico hoje, mas estou num mau humor tão grande que era capaz de o texto fazer vocês chorarem. Estou sentindo que a crise é das brabas, o que significa que talvez fiquemos um tempo sem novidades.
(Nota: nunca comprar antidepressivo de outro laboratório).

Obrigado a todos que fizeram comentários encorajadores, e principalmente àqueles que deram sugestões de melhora. Acatei algumas, ignorei outras, seguindo critérios totalmente idiossincráticos. Mr. Isaac Marion citou a tradução aqui e, de quebra, nos brinda com outro excelente texto.
O Isaac me disse que ninguém precisa pedir autorização: ele quer mais é que todo mundo leia o que ele escreve, então todo mundo pode reproduzir os textos, no original ou traduzidos, na íntegra ou aos pedaços, desde que o autor seja citado. Aliás, eu traduziria essa última história, se conseguisse pensar num jeito de traduzir o título. Se alguém se habilitar…

Como prometido, segue a tradução da história do zumbi. Meu inglês é aquela coisa lamentável, então aceito sugestões para melhorar o trabalho.
(Isaac, thank you very much for your support. My translation doesn’t make justice to the original text but, like I told you, I just needed to share it. It’s a great tale, and I envy you forever)

Eu sou um zumbi apaixonadoPor Isaac Marion
Eu sou um zumbi, e isso nem é tão ruim. Estou aprendendo a conviver com o fato. Desculpe se não me apresento direito, mas é que eu não tenho mais nome. Duvido que algum de nós tenha. Nós os esquecemos, assim como aniversários e senhas do banco. Eu acho que o meu começava com “T”, mas não tenho certeza. É engraçado, porque quando eu estava vivo, estava sempre esquecendo o nome das outras pessoas. Estou descobrindo que a vida de zumbi é farta de ironias, uma piada onipresente. Mas é difícil rir quando seus lábios já apodreceram.
Antes de me tornar um zumbi, eu acho que era um executivo, ou algum tipo de jovem profissional. Acho que eu trabalhava em um daqueles empregos de escritório sufocantes em algum arranha-céu sei lá onde. As roupas dependuradas nos restos do meu corpo são de boa qualidade. Belas calças de gabardine, camisa de seda prateada, gravata Armani vermelha. Eu provavelmente pareceria bem distinto, não fossem meus intestinos se arrastando no chão. Rá!
Nós gostamos de brincar e especular sobre o que restou de nossas roupas, já que essas últimas escolhas de moda são quase sempre a única pista de quem nós éramos antes de nos tornarmos ninguém. Alguns são menos óbvios do que eu. Calça jeans e camiseta branca. Saia e regata. Então fazemos palpites aleatórios.
Você era um encanador. Você era uma barista. Lembra alguma coisa?
Geralmente não lembram.
Ninguém que eu conheça tem memórias específicas. Reconhecemos algumas coisas — prédios, carros, gravatas — mas o contexto nos escapa. Estamos aqui, Fazemos o que fazemos. Nossa dicção não é lá essas coisas, mas podemos nos comunicar. Nós rosnamos e resmungamos, fazemos gestos com as mãos, e de vez em quando umas palavras escapam. Não é tão diferente de como era antes.
Há algumas centenas de nós vivendo em uma grande planície de poeira perto de uma grande cidade. Não precisamos de abrigo ou calor, obviamente. Ficamos em pé na poeira, e o tempo passa. Acho que estamos aqui há um bom tempo. Mesmo arrastando minhas entranhas, eu estou nos primeiros estágios de decomposição, mas há alguns mais velhos por aqui que são pouco mais do que esqueletos com uns fiapos de músculo dependurados. De alguma forma, os músculos ainda se extendem e se contraem, e eles continuam a se mover. Nunca vi nenhum de nós “morrer” de velhice. Talvez nós vivamos para sempre, não sei. Eu já não penso muito no futuro. Isso é algo que é muito diferente de como era antes. Quando eu estava vivo, só pensava no futuro. Vivia obcecado com isso. A morte me fez relaxar.
Mas me entristece termos esquecido nossos nomes. De tudo, isso parece ser o mais trágico. Eu não sinto falta do meu, mas lamento pelos dos outros, porque eu quero amá-los, mas não sei quem eles são.
Hoje alguns de nós iremos para a cidade para buscar comida. A expedição começa quando um de nós fica com fome e começa a arrastar os pés na direção da cidade, e alguns outros o seguem. Pensamento com foco é uma ocorrência rara entre nós, e quando vemos alguém se esforçando para isso, seguimos. De outro modo, ficaríamos só parados rosnando. Ficamos um tempão parados rosnando, o que às vezes é frustrante. Os anos passam desse jeito. A carne murcha sobre nossos ossos, e nós ficamos parados, esperando. Fico pensando em qual deve ser a minha idade.
A cidade onde as pessoas moram não é muito longe. Nós chegamos pelo meio-dia e começamos a procurar por carne fresca. O novo tipo de fome é uma sensação estranha. Você não a sente no estômago — claro que não, já que alguns de nós nem têm estômago. Você a sente… por todo lado. Você começa a se sentir “mais morto”. Eu já vi alguns de meus amigos voltarem à morte total quando a comida é escassa. Eles vão ficando mais lentos, param, e se tornam cadáveres de novo. Eu não entendo nada.
Acho que a maior parte do mundo já era, porque as cidades por onde vagamos estão se desintegrando tão rapidamente quanto nós. Carros quebrados, enferrujados, enchem as ruas. O que era de vidro se espatifou. Não sei se houve uma guerra, ou uma peste, ou se fomos apenas nós. Talvez tenham sido as três coisas. Não sei. Não penso mais sobre coisas assim.
Encontramos algumas pessoas em um conjunto de prédios de apartamentos arruinados, e as comemos. Algumas delas têm armas e, como sempre, temos algumas baixas, mas não nos importamos. Por que nos importaríamos? O que é a morte, agora?
Comer não é uma coisa agradável. Eu arranco o braço de um homem a mordidas e odeio isso, é nojento. Eu odeio os gritos dele, porque não gosto de dor, não gosto de machucar ninguém, mas isto é o mundo agora, isto é o que nós fazemos. Eu não o como todo, é claro, se eu deixar sobrar o bastante, ele vai se levantar e me acompanhar até nosso campo de terra fora da cidade, e isso pode me fazer sentir melhor. Eu o apresentarei a todos, e talvez fiquemos de pé resmungando por um tempo. É difícil definir o que sejam “amigos”, mas talvez isso se aproxime. Se eu não comê-lo inteiro, se eu deixar sobrar o bastante…
Mas é claro que eu não deixo sobrar o bastante. Eu como o cérebro dele, porque é a melhor parte. É a parte que, quando engolida, faz minha cabeça se iluminar com sensações. Memórias claras. De três a dez segundos, dependendo da pessoa, eu consigo me sentir vivo. Eu distingo traços de refeições deliciosas, belas canções, perfumes, crepúsculos, orgasmos, vida. E então tudo se dissolve, eu me levanto e vou tropeçando para fora da cidade, ainda morto, mas sentindo como se o fosse um pouco menos. Me sentindo bem.
Eu não sei porque temos que comer gente. Eu não entendo que graça tem mastigar o pescoço de alguém. Nós certamente não digerimos a carne nem absorvemos os nutrientes. Meu estômago é uma bolsa podre e inútil de bile seca. Nós não digerimos, apenas comemos até que a gravidade force tudo para fora do cu, então comemos mais. Parece tão inútil, e ainda assim é o que nos mantém andando. Eu não sei por quê. Nenhum de nós entende de verdade por que somos do jeito que somos. Não sabemos se somos o resultado de algum tipo de infecção global, ou alguma maldição antiga, ou algo ainda mais sem sentido. Nós não falamos muito sobre isso. Debate existencial não é uma parte importante da vida de zumbi. Nós estamos aqui, e fazemos coisas. Nós somos simples. É legal, às vezes.
Outra vez fora da cidade, de volta com os outros ao campo de terra, eu começo a andar em círculos sem motivo. Eu finco um pé na terra e giro em volta dele, rodando e rodando, levantando nuvens de poeira. Antes, quando estava vivo, eu nunca poderia fazer isso. Eu lembro da tensão. Eu lembro das contas e prazos, formulários de declaração de renda. Lembro de viver tão ocupado, sempre, em todo lugar, o tempo todo, tão ocupado. Agora estou apenas num campo de poeira a céu aberto, andando em círculos. O mundo foi simplificado. Ser morto é fácil.
Depois de uns dias, eu paro de andar, e fico parado em pé, balançando para frente e para trás e rosnando um pouco. Eu não sei porque rosno. Não sinto dor, nem tristeza. Acho que é só o ar sendo espremido para dentro e para fora de meus pulmões. Quando meus pulmões se decompuserem, isso provavelmente vai parar. E agora, enquanto balanço e rosno, precebo uma mulher morta a uns metros de mim, olhando para as montanhas distantes. Ela não balança nem rosna, só fica com a cabeça pendulando de um lado para outro. Eu gosto disso nela, dela não balançar nem rosnar. Eu me aproximo e fico parado a seu lado. Eu cicio algo que lembra um cumprimento, que ela responde com um espasmo de ombro.
Eu gosto dela. Eu estendo a mão e toco seu cabelo. Ela não está morta há muito tempo. A pele dela é cinza e seus olhos estão um pouco fundos, mas ela não tem ossos nem órgãos expostos. A roupa dela é uma saia preta e uma blusa justa de abotoar. Eu suspeito que ela era uma garçonete.
Preso ao peito dela há um crachá prateado.
Eu consigo ler o nome dela. Ela tem um nome.
O nome dela é Emily.
Eu aponto para o peito dela. Lentamente, com muito esforço, eu digo, “Em… ily”. A palavra escorrega para fora do que sobrou da minha língua como se fosse mel. Que belo nome. Eu me sinto bem só de pronunciá-lo.
Os olhos embaçados de Emily se arregalam em reação ao som, e ela sorri. Eu sorrio também, e acho que fico um pouco nervoso, porque meu fêmur se quebra e eu caio de costas na poeira. Emily apenas ri, e é um som engasgado, brusco, adorável. Ela estende a mão e me ajuda a levantar.
Emily e eu nos apaixonamos.
Não sei bem como isso acontece. Eu lembro de como o amor era antes, e isso é diferente. É mais simples. Antes, havia fatores emocionais e biológicos complicados envolvidos. Nós tínhamos longas listas de coisas a fazer e testes elaborados para passar. Prestávamos atenção em penteados e carreiras e tamanhos de peitos. E havia o sexo, em tudo, confundindo todo mundo, que nem a fome. Ele criava saudade, ele criava ambição, competição, ele levava pessoas a deixarem suas casas e inventarem automóveis, naves espaciais e bomba atômicas, quando podiam, em vez disso, ficar sentadas no sofá até morrerem. Paixões animalescas. Necessidades inconscientes. O sexo fazia o mundo girar.
Isso tudo já era. O sexo, antes uma força tão universal quanto a gravidade, agora é irrelevante. Ambição e saudade não são mais parte da equação. Meu pênis caiu há duas semanas.
Então a equação foi excluída, o quadro-negro apagado, e as coisas são diferentes agora. Nossas ações não têm motivos subjacentes. Nós arrastamos os pés pela poeira e ocasionalmente trocamos palavras rosnadas, pesadas, com nossos companheiros. Ninguém discute. Não há brigas, nunca.
E o lance com Emily não é complicado. Eu apenas a vejo, e me aproximo e, por razão nenhuma, mesmo, eu decido que quero estar com ela por muito tempo. Então agora nós arrastamos os pés na poeira juntos, não mais sozinhos. Sei lá por quê, gostamos da companhia um do outro. Quando precisamos ir à cidade para comer gente, nós o fazemos em horas diferentes, porque é desagradável, e não queremos compartilhar isso. Mas compartilhamos todo o resto, e é bom.
Nós decidimos andar até as montanhas. Levamos três dias, mas agora estamos em pé em um penhasco olhando a lua branca e gorda. Às nossas costas, o céu da noite está vermelho por causa de cidades distantes queimando, mas não ligamos para isso. Desajeitadamente, eu agarro a mão de Emily, e nós olhamos a lua.
Não há um motivo real para nada disso mas, como eu disse, o mundo foi simplificado. O amor foi simplificado. Tudo é fácil agora. Ontem minha perna caiu, e eu nem liguei.

Não, minha vida não se resume a fazer a barba, embora o assunto tenha virado obsessão. Além de arriscar a vida com uma lâmina no pescoço, tenho dedicado meu tempo livre à tradução desse texto. O autor, Isaac Marion, não só me autorizou, como ficou feliz de saber que uma história dele terá versão em outro idioma. Quando terminar, publico aqui. Se você lê inglês, porém, aconselho a ir lá e ler o original. Aliás, leia o blog todo e outras histórias do sujeito. Tudo muito bom.

— A pata fica quieta quando bota ovo, enquanto a galinha faz um escândalo danado. Por isso o ovo de galinha é tão mais popular.
Esse conselho em forma de semifábula me foi dado por Jacques Meir, publicitário e velho colega de trabalho, com quem já briguei muito (já briguei muito com todo mundo que conheço). Com isso, ele quis dizer que eu deveria fazer mais alarde sobre o andamento dos meus projetos. Segui o conselho, e agora vivo cacarejando pela empresa.
Jacques sabe do que está falando. O sujeito entende de propaganda: tem sua agência, já deu aula na ESPM. Agora ele está de projeto novo: o site Propaganda Sustentável, que quer chamar o público para discutir os rumos da publicidade. Lá você pode comentar sobre campanhas abusivas, preconceituosas, mentirosas, ou elogiar os raros bons anúncios. Os textos de análise são do próprio Jacques, e neles você vai encontrar críticas, análises, desabafos, tudo sobre propaganda. Vale a pena a visita e a participação.

(Jacques, pode depositar a grana)

Parte da tarefa proposta por nossa professora de português (e aceita por todos os participantes, portanto parem de xingar a pobre professora) era criticarmos os textos uns dos outros. Calhou de o Marcelo, dono do blog Amor aos domingos, ficar incumbido de criticar o meu texto. Ele o fez de forma muito carinhosa (indulgente, até), pelo que fico eternamente agradecido. Segue abaixo a crítica do digno colega:

Desequilíbrio na cadeia alimentar
Escrito por Marco Aurélio G. dos Santos, “Concorrência desleal” possui um humor cáustico graças à irritabilidade constante do personagem principal, um mendigo. Ele narra seu percurso involuntário, apesar da necessidade de se alimentar, até uma feira livre onde já mantinha contatos para tal abastecimento. Lá, uma inesperada turma de jovens, os “freegans”, se revelam seus concorrentes. Não são quaisquer concorrentes, são jovens que não precisam recolher as sobras. Sua indignação é tão grande que, quando uma das jovens oferece uma parte do que foi recolhido, faz uso de um expediente altivo para deixar claros os seus princípios: nega orgulhosamente a oferta, apesar da fome latente.
Essa é a forma que se poderia apresentar o texto para alguma avó ou beata, caso quisessem afastá-las desse petardo recheado de saborosos e divertidos palavrões que Marco Aurélio produziu.
É possível sentir-se na pele do mendigo com tantos elementos que descrevem a vida do personagem. Além dos necessários detalhes escatológicos, o autor aproveita pequenos lances da rotina de um morador de rua que enriquecem o texto, tais como: a memória inexata em “Foi na semana passada, ou retrasada, sei lá”; o seu acerto com os feirantes de só aparecer depois que a feira acaba “para não espantar a freguesia”; tiradas de humor rápidas e certeiras em “encontrei o Zé Banana, que vende tomates” e “catando comida no lixo porque acham bonito”.
Os já citados palavrões e gírias produzem um efeito realista e demonstram a irritação do personagem até chegar numa frase final do texto com um pensamento que não podia ficar de fora É o indivíduo com total controle da situação, de cabeça erguida e pronto para ensinar algum discípulo, caso não saiba, como tratar a concorrência.
Com essas características reunidas, a leitura se torna agradável e risonha. Impossível não se solidarizar com o mendigo e ficar irritado junto com ele A curiosidade a respeito do ideal “freegan” também aumenta pela forma como foi apresentado, ou seja, a atitude dos jovens, que explica o título do texto, já demonstra um ponto para discussão.
Pensando bem, acho que as avós e as beatas perdoariam os volumosos palavrões do texto em favor da causa do mendigo. Elas entenderiam sua revolta e teriam conversas muito sérias com as mães desses jovens. Não deixaram de recomendar às mães que cozinhassem feijão com um prego na panela: “É ferro, minha filha, eles estão muito pálidos e sem juízo”.

Além de mim e do Marcelo, participam do projeto (que vai continuar, aguardem) os autores dos blogs Blog do Thadeu, Em busca do inefável, Expresso sem açúcar, por favor!, Grita São Paulo, Sogripa! O blog, e Três dedos de prosa. O Vinícius explica melhor de que se trata o tal projeto.