O sincretismo religioso em Israel

(II Reis 17:24-41)
— Posso mostrar os slides, Senhor?
Sentado à cabeceira de uma mesa de reuniões comprida, Javé parece entediado e triste. Um anjo, em pé lá na frente, tenta atualizá-Lo sobre a situação do reino de Israel.
— É slide do que mesmo?
— Dos deuses que os assírios levaram para Israel.
— Precisa mesmo?
— Era bom, pra contextualizar.
— Tá bom, vai.
— Aqui estão:

Os deuses que os colonos assírios levaram para Israel, em ilustrações do monge beneditino francês Antoine Augustin Calmet (1672-1757)

— Puta que pariu… Mas é um sítio! Tem galinha, galo, cachorro, burro, cavalo, pavão… Esse Ashima aí é o quê?
— Eu… Eu não sei bem, Senhor. Um bode, talvez?
— Pode ser. Tá vendo porque eu não quero que as pessoas façam ídolos? Porque elas não têm imaginação! Elas pensam em seres celestiais, com poderes, e o que imaginam? Um monte de bicho de fazenda. Apaporra. E o que esses bichos fazem, ou deveriam fazer?
— O mais complicado é esse Sukkoth-Benoth…
— O nome da galinha é Tendas das Filhas???
— Pois é. Traduziram assim. Aí tem gente que diz que é porque o culto dos caras tem umas tendas onde colocam umas moças para… para…
— Enchem as tenda de puta.
— Isso. Mas a galinha com os pintinhos é um símbolo da constelação das plêiades. Eu acho que alguma coisa se perdeu no hebraico. Como se trata de uma divindade da Babilônia, e ligada à fertilidade, eu chutaria que é Zarpanit, a deusa-mãe, mulher do…
— Mulher do Marduk, o deus grandão deles lá. Metido a besta, casado com aquela vagabunda… — Javé nota o espanto do anjo — Não que essa galera exista, claro. O único Deus que existe sou eu. É que… é que eu leio sobre essas coisas aí, pra dar risada.
— Entendido, Senhor. Continuando… Nergal, esse galo aí, é o deus da cidade de Cuta, na região do Eufrates. É o deus babilônio do… deixa ver… do sol e da guerra. E da peste. E do fogo. E do deserto. E do submundo.
— Caralho. Esse aí acumulou mais do que eu. Deixa o Sindideus saber disso.
— Sindideus?
— Toca o barco. E o bode? Ashima, né?
— É. Deusa do destino de Hama, na Síria.
— Como deusa? É um cara!
— Senhor, a questão de gênero…
— Ai, meu saco. Anjo gosta desse negócio de trans, né? Tudo bem. É uma deusa. Ui, deusa! Ui, Senhora do Destino! E depois, o cachorrinho?
— Esse é Nibhaz e o burro que vem em seguida é Tartak. Os dois são deuses dos aveus, de Gaza. Anamelech é a deusa-lua e Adramelech é o deus-sol, marido dela. Os dois são adorados pelos sefarvitas, que oferecem seus filhos em sacrifício ao casal.
— Que palhaçada. E estão fazendo isso em Israel? Na Terra Prometida? Prometida por mim. Dada por mim. Protegida POR MIM. E AÍ VEM UM MONTE DE CORNO LÁ DA CASA DO CARALHO E COMEÇA A ADORAR O ZOOLÓGICO INTEIRO NA MINHA TERRA. É isso, meu anjo?
— É, Senhor. Infelizmente é isso.
— Cachorro, galinha, burro, pavão, égua… Tem um jogo do bicho inteiro ali. Tem leão?
— Xeu ver aqui, um minuto… Leão, leão, leão… Não, Senhor. Leão não tem.
— Pois vai ter…

*   *   *

A estratégia de Sargão, imperador da Assíria, era boa: levar os israelitas para o exílio e trazer gente de outros lugares para ocupar Israel. Longe da terra, o desejo de rebelar-se diminui, a pessoa se conforma, toca a vida. A religião de Israel naquela época não era bem monoteísta: estava mais para henoteísta, em que se serve a um só deus, sem negar a existência de outros. Naquele tempo e naquela região, todos os povos eram henoteístas, e acreditavam que seu deus tinha mais poder sobre aquele território. Os israelitas acreditavam que Javé era poderoso em Israel e Judá, mas não negavam que Marduk, por exemplo, podia ser mais poderoso na Babilônia. Então, além de longe de sua terra, os israelitas estavam longe de seu Deus. Javé continuava ali em Israel, o que seria um problema para os colonos.

*   *   *

Os colonos recém-chegados estão, como dizem os poetas e os sábios, com o cu na mão. Já é bem difícil sair da sua terra para um lugar desconhecido. Fica mais difícil se houver outras pessoas na mesma situação, e que são de outras culturas, falam outras línguas. Hama (ou Hamate) ficava na Síria. Babilônia (a cidade) e Cuta ficavam no atual Iraque. Os Aveus vinham de Gaza, que na época era a Filistia (soa como Palestina? Não é coincidência). Ninguém sabe direito onde ficava Sefarvaim, se no Iraque ou na Síria, mas o caso é: muita gente de vários lugares diferentes, o que deixava tudo mais complicado. E para complicar mais ainda, as pessoas começaram a aparecer mortas. De saudade de casa? Não. Mortas-matadas, com marcas de garras e dentes. Garras e dentes grandes.
— Foi um leão — conclui um colono ao ver mais uma vítima estraçalhada no chão.
— Um leão? Tá doido? Só existe leão na Áfr…
O leão, uma espécie que na época existia na África, sim, mas também da Grécia até a Índia, aparece e come os dois debatedores.
Sim, os leões tinham invadido Israel e estavam matando os colonos. A notícia chegou a Sargão II. O imperador, um henoteísta, logo desconfiou da causa dessa invasão felina e chamou um dos servos do palácio.
— No meio desses israelitas aí que nós trouxemos, tem algum sacerdote da religião deles?
— Ih, majestade… Difícil, hein? Aquilo ali tava uma zona quando a gente chegou. Virou Brasil, todo mundo seguia duas, três religiões. De qual religião o senhor está falando?
— A original mesmo, raiz. Aquela miséria de um deus só, que não aparece nunca…
— Aaaah, sei qualé. Tem um cara aqui, sim.

*   *   *

— HAHAHAHAHAHAHAHAAHA. CONTA OUTRA, PADRECO!
— É sério, caralho! Cês querem aprender a religião ou não?
— Claro que sim, sacerdote. Mas pega leve, pô. Pão caindo do céu?
— Quero ver na hora que eu contar do profeta que foi pro céu de carro.
— HEIN?
— Uma coisa de cada vez. Alguma dúvida até agora?
— Eu tenho! Aqui no Levítico diz que não pode usar roupa feita de dois tecidos diferentes, certo? Por quê?
— Como assim, “por quê”? Porque não pode, ué. Porque Deus mandou.
— Tá, mas porque esse deus aí… esse Javé que cês fala… se preocupa com isso?
— Eu… eu não sei.
— Porque veja, o Tartak, meu deus, nunca pediria nada idiota assim. E olha que ele é um burro…
— Cara, cê quer virar comida de leão? Não, né? Então tá aí o motivo da lei: misturar dois tecidos atrai leão. Satisfeito?
— …
— Então vamos adiante. Leis sobre a lepra
O trabalho do sacerdote foi difícil, mas ele conseguiu ensinar a religião israelita aos novos moradores da terra, e Javé mandou os leões de volta para casa. Só que o furdunço já estava feito. Ninguém larga sua religião tão fácil, então Samaria virou a capital do sincretismo. Os cultos a várias divindades se misturaram, Javé entrou nessa salada, e o povo adorava e sacrificava a todos esses deuses.
O autor do livro dos Reis condena com muita ênfase esse estado de coisas, é claro. Aqui há outro trecho longo recapitulando os pecados que levaram ao fim do reino de Israel, e agora também os pecados dos novos habitantes, que seriam conhecidos como samaritanos.

Essa treta entre Judá e Samaria continuaria forte mais de setecentos anos depois, nos tempos de Cristo. Conhece o Bom Samaritano? Um cara machucado na estrada, vários judeus passam por ele — poderosos, ricos, religiosos — e o ignoram. Quem o socorre, leva para casa e paga pelo tratamento todo é justamente um samaritano. Jesus inventou essa história porque tinha mandado amar o próximo e os discípulos, como sempre se fazendo de bestas, perguntaram “mas quem é o próximo?”. Jesus contou a parábola e no fim perguntou: “Quem é o próximo nessa história?”. Os discípulos nem conseguem falar em samaritano: dizem “aquele que ajudou o cara”. Era treta forte.
Em São Paulo tem um hospital católico chamado Hospital Samaritano. Fica no meio de Higienópolis, o bairro judeu. Puta sacanagem.

10 comments

  1. Marco, estou com preguiça de procurar um lugar melhor para escrever então vai aqui mesmo.
    Acompanhei o boom dos blogs e você era leitura diária, assim como o blog do Mosquito, da Fernanda, dos Capanemas, etc. Mas a vida segue e as coisas mudam, parei de seguir os blogs, mas as vezes eu acaba voltando para ler alguma coisa.
    Todo mundo desapareceu, exceto você, e as vezes eu lembrava do blog e dava uma bisbilhotada, as vezes até relendo algo que já havia visto, como o posto sobre o relógio do seu pai, pois você escreve de uma forma simples que me faz pensar sobre minha própria vida e como ela é parecida com a de muita gente.
    Hoje foi um destes dias… não sei porque raios lembrei do blog (estava estudando algo desagradável, talvez seja isso) e queria me divertir um pouco, lembrei de você e dei uma passada por aqui.
    Achei que tudo estaria as traças, mas não, os evangelhos estão de volta, o post familiar sobre sua mãe, as doses de humor, as reclamações, etc. Inacreditável!
    Gostaria apenas de te parabenizar por manter o blog e por ter se tornado a pessoa que se tornou, lembra do cara solteirão ? que não dirigia ? que não gostava do trabalho ? (estou falando de você, embora eu fosse parecido) dei uma estalkeada e vi você até tocando piano, casado, passeando, crescendo profissionalmente.
    Me faz pensar que a vida é um tanto quanto complicada, e é assim mesmo, para todo mundo, mas basta a gente descomplicar de vez em quando que vai melhorando.
    Abraço e continue a postar por aqui, quem sabe daqui a alguns anos volto novamente.

  2. Marco, você tem seguidores fieis desde o gênesis do teu blog, quando tudo era trevas em 2002 e a sua cabeça gigante se movia sobre a face das águas. Então de vez em quando, sei lá, um vez por ano, dá um alô por aqui, tipo: “Morri ainda não sua cambada de hereges”… Sentimos sua falta, um livro teu, unzinho só, seria o nosso sonho de consumo, se precisar da minha ajuda para um patrocínio literário, entra em contato comigo! Por enquanto você ajoelhou e só pagou metade do boqu… digo, da reza… kkkk… Grande abraço!

  3. Mano? Isso é muito bom… material muito interessante! Grande conhecimento! Hilário! Mas não achei nada violento como denunciaram nesse twitter ai… entao, acho que o lugar destes textos… cabem bem no teatro. Talvez diminuam as frequências de palavrões e tals. Porém, em mãos certas fica bem adaptado!

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