O reinado de Acaz em Judá

(II Reis 16)
— Doe ouro! Ouro para salvar o reino! Judá precisa de você! Doe ouro! Doe prata! Ouro e prata para salvar o reino!
Uma kombi velha percorre as ladeiras de Jerusalém. O povo sai das casas com anéis, brincos, pulseiras, e joga pela porta lateral aberta da perua. No vidro traseiro, um adesivo “Dirigido por mim, Guiado por Javé” em que “Javé” foi riscado e trocado por “Moloque”. A religião oficial de Judá, a religião do Deus que se revelou a Abraão e depois inventou a religião junto com Moisés, a religião de um Deus só e várias regras de higiene já não é mais tão popular. Graças ao rei Acaz.
Acaz está no palácio, andando em círculos ao redor de uma pilha de ouro e prata: vasos, pratos, castiçais, objetos de decoração e de culto tirados do palácio e do Templo.
— Tem que dar certo. Ele tem que aceitar. Se ele não aceitar, aí… Mas ele vai aceitar.

*   *   *

— Filho da PUTA!

Olhando na tela quebrada do tablet a imagem em tempo real de Acaz no palácio, Javé não se agüenta. Ele joga o tablet, uma tranqueira que roda Android 2.3, contra a parede do Universo. O aparelho se desfaz numa explosão nuclear. Um anjo traz outro.
— Não quero mais ver essa merda!
Deus bate no tablet, que cai no chão e trinca a tela. O anjo suspira. Lembra do tempo em que usavam iPads de última geração. Mas não valia a pena. Deus quebra um tablet por dia, e estava saindo caro. Além do mais, não pegava bem gente do céu usando tecnologia importada do inferno. Então o departamento de compras passou a apelar para o segundo pior fornecedor: a China.
— Esse MERDA tá tirando onda com a minha cara! Porra! Minha vida é só desgosto, não é possível. Eu escolhi esse povo, tirei da escravidão, entreguei uma terra boa para eles, mandei matar todo mundo que morava lá, que era para não irem atrás de outros deuses. E o que aconteceu? Hein? ME FALA!
— Israel… Israel voltou às religiões antigas.
— Isso! Moloque! Baal! A série B das divindades, um bando de entidade de segunda. E eu aqui, o verdadeiro Deus, criador da porra do Universo, deixado de lado! Mas Judá, não. Judá sempre foi legal. O reino se dividiu e Israel foi só ladeira a baixo, por isso que a batata deles tá quase queimando de tão assada. Mas Judá era uma belezinha. Davi, depois o Salomão, filho do Davi. Aí veio o tal do Jeroboão lá, o reino se dividiu, mas em Judá continuou a dinastia. Veio o Roboão, filho do Salomão, depois o… o… aquele filho lá do Roboão.
— Abias
— Foda-se, quem se importa? O negócio é que em Israel sempre foi aquela zona. Revolução, golpe, contragolpe, #NãoVaiTerGolpe, bate panela, “cadê as panela?”, outro golpista, uma putaria. Em Judá é sempre um descendente de Davi, bonitinho, organizadinho. Claro que de vez em quando aparece um ou outro rei feladaputa, mas eu logo dava um jeito. Agora me vem esse Acaz e… Filho da PUTA, eu não acredito que ele vai sair dessa! Resistir a uma invasão de Israel, vá lá. Israel é grande mas não é dois. Mas da Síria? A Síria é FODA. A Síria tem o pão sírio… Hmmm, vontadinha. Tem aí?
— Está em falta, Senhor.
— Puta que pariu, porque é que no céu nunca tem pão, hein? Bom, eu tava falando da Síria. Tem o pão sírio. Tem… tem o hospital Sírio-Libanês… tem aquela frutinha lá, o Damasco. Ô, anjo… Curte damasco seco?
— Eu… eu gosto, Senhor.
— Então cê aprecia dá-mais-cu seco, é? Hein? HAhaahahaha! Entendeu essa? Dá-mais-cu seco! Hahahhhahaha!
— …
— Próxima geração de anjo eu vou lembrar de fazer com senso de humor… Tem o damasco, tem o Sírio-Libanês, tem o… tem o Círio de Nazaré.
— Senhor, na verdade o Círio de Naz…
— NÃO ME CORRIJA! Tá pensando que tá no Twitter, desgraça???
— …
— Eu não acredito que o corno do Acaz vai sair dessa. Mas que grande, que imenso e incomensurável filho de uma grande e gorda prostituta tuberculosa perneta.

*   *   *

Moloque, em representação do século 18


Dá para entender a fúria de Javé. Primeiro porque tablet chingling rodando Android 2.3, provavelmente com aquela resolução 800×600, é uma puta sacanagem. E depois porque Acaz, rei de Judá, parecia fazer de tudo mesmo para provocar a ira divina. Ele chegou ao trono aos 20 anos de idade, com a morte do pai, Jotão, mais ou menos em 732 antes de Cristo. Acaz reinou por 16 anos. Papai Jotão (não confundir com Jotalhão) era um rei fiel à religião dos antepassados. Acaz, não: tratou logo de oficializar os cultos de fertilidade, clandestinos havia séculos. Ele oferecia sacrifícios e queimava incenso nos “lugares altos”, que eram locais ao ar livre para adoração de vários deuses (em alguns deles tinha espaço até para uma altarzinho dedicado a Javé — e a única coisa que poderia irritar o Deus dos judeus mais do que adorar outros deuses era considerá-Lo como um deles). A Bíblia diz também que ele sacrificava “embaixo de toda árvore frondosa”: alguns comentaristas dizem que isso era um eufemismo para orgias dedicadas aos deuses da fertilidade. Além da idolatria e da putaria, Acaz também chegou ao extremo de sacrificar o próprio filho, um costume muito querido entre os adoradores do deus Moloque.
Como castigo por sua ousadia, digamos assim, Deus mandou Rezim, rei da Síria (que na época se chamava Aram, onde se falava o aramaico, idioma que viria a ser falado na Palestina dos tempos de Cristo), e Remalias, rei de Israel, cercarem Jerusalém. A vitória era certa, mas Jerusalém resistiu. E no meio do cerco, Acaz teve uma idéia.
Anos antes, quando o rei da Assíria Tiglate-Pileser III (Pul para os íntimos) invadiu Israel, o então rei israelita Menaém deu a ele 34 toneladas de prata para aliviar pro lado dele e ir embora. Lembrando disso, Acaz resolveu raspar o tacho: recolheu todo o ouro e prata do Templo e do palácio, e mandou uma kombi reino afora para recolher até a última lasca de metal precioso.
— Tem que dar certo. — Acaz murmura pela milésima vez — Ele tem que aceit…
Entra um servo para dizer que a kombi está lotada. Acaz manda trazer tudo e juntar à pilha no centro do salão, e os servos o fazem. O rei se posta de costas para o tesouro e faz uma selfie.
— E agora, majestade?
— Agora é pegar a flanela e lustrar bem as bolas do Pul. Vou mandar a foto pelo Zap. Que que eu escrevo, você que é bom de bajular os outros?
— Obrigado, senhor. Eu começaria com “Digníssimo e muito piedoso Tiglete-Pileser III, soberano dos Assírios, Luz da Manhã, fogo sagrado que arde em nossos corações, Ó PUL, TU QUE ÉS TÃO PODEROSO E SUBLIME, QUE COM TUA SERENIDADE E JUSTIÇA LANÇA SOBRE OS POVOS A VERDADEIRA L…”
— CALMA. Calma. Eu não quero estourar o saco do cara. É mais uma alisada, sabe? Uma massaginha, um beijinho, aquela cosquinha no cu… Hummm… Já sei. “Miga, sua loka. Tô pas-sa-da com a Síria e Israel. Acredita que tão querendo me invadir, os arrombado? Cê sabe que cê é tipo um pai pra mim, né, miga? Te amo tanto… Tô aqui pra te servir, mas vai ser difícil se estourarem minha cara, né? Então conto aí com a nossa amizade. E como prova dessa amizade, tô te mandando uma lembrancinha. Tá aí na foto. Não sou eu, hein?” Cadê aquela carinha chorando de rir? Aqui. “Não sou eu. É essa pilha de ouro e prata aí. É todo o ouro e toda a prata do reino. Coisa pouca. Mais ouro do que isso, só se o Michael Phelps casasse com um bicheiro em comunhão total de bens. Muito mais do que aquelas 34 toneladas do outro lá, viu? Aguardo sua resposta.” Enviar, pronto. Seja o que os deuses quiserem.
— O que Deus quiser, majestade.
— Que seja. Escolhe um aí e reza. E já leva o presente lá pro Pul.
— Majestade… O reino vai ficar pobre.
— A alternativa é não ter mais reino. O que você prefere?
— …
— Arrombildo. Vai.

Mapa do Levante em 830 a.C. mostra Israel, Judá, o reino Arameu (Síria) e um pedacinho do Império Assírio lá em cima

*   *   *

O arrombildo foi, Pul aceitou o presente, e fez muito mais do que Acaz sonhava. Invadiu a Síria, tomou Damasco (a cidade, não a fruta) e executou o reizim Rezim. Isso aconteceu em 732 a.C., e só em 1941 Damasco voltou às mãos dos sírios. Durante quase 2.700 anos, a cidade passou de mão em mão, igual tua irmã outras cidades que sofreram cercos e invasões. O povo de Damasco foi levado para o cativeiro na cidade de Quir, em Moabe, que estava sob domínio do Império Assírio. Quir é hoje a cidade de Karak, na Jordânia. Além de grande cidade, daria também um bom nome para um DJ.
A notícia era boa demais para ser verdade, Então Acaz montou num camelo (o governo estava sem dinheiro para gasolina, então não dava para ir de carro) e foi até Damasco para se encontrar com Pul. Nem consigo imaginar a sessão de bajulação, de lustra-bolas, de puxa-saquismo que se seguiu. Só sei que Acaz chegou lá e viu um altar grande, bonito, ficou muito impressionado com o altar. Tirou uma foto e mandou para Urias, o sacerdote em Jerusalém: “Bafo esse altar. Quero um i-gual.”
Vocês vejam a situação de Urias: ele era sacerdote da religião oficial. Estava desmoralizado, coitado. O rei só queria saber de queimar criança e fazer suruba no morro, enquanto o pobre do Urias ficava no templo (agora bem mais pobre sem os adornos de ouro e prata) sacrificando a Javé o que sobrava. Ia fazer o quê? Falar “não, constrói você”? Então Urias fez o altar.
Quanta Acaz voltou a Jerusalém, ficou doido com o altar novo.
— Olha que beleza! Nossa religião está ultrapassada, Urias!
— Isso eu já não sei, senhor…
— Pois eu sei! Fica aquele templo lá, cheio de ritual, lugar lá que ninguém pode pisar, aquele altar hor-ro-roso. Estamos em 732 antes de Cristo…
— Antes de quem?
— Quê?
— Cê falou “732 antes de Cristo”.
— Falei? Nem vi. Tô meio doidão ainda. Os cara lá em Damasco usa uns negócio… Mano, depois te conto. Mas enfim, o negócio é que estamos agora, neste ano de agora, que tudo é… moderno e… avançado… sei lá, e nossa religião é, tipo, do século passado. Sabe? Chega disso.
— É a religião dos nossos antepassados, senhor. Do Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. Do Deus que nos tirou do Egito e nos trouxe para uma terra que mana leite e mel.
— Que terra que mana leite e mel, Urias? Se não for as cabras e as abelhas, não tem leite nem mel pra ninguém, não. E que Egito? Eu nunca pisei no Egito, nem meu pai. Você já foi lá no Egito, tirou selfie com pirâmide? Não, né? Abraão, Isaque, Jacu, tudo coisa antiga. Isso que eu tô falando. ISSO QUE EU TÔ FALANDO, TÁ LIGADO.
— O que é esse pó branco no seu nariz, senhor?
— Afe, tem giz na lousa! ABAFA! Aquele altar horroroso nosso, lá. Que porra é aquela? Um monte de boi de cobre, aquela pia grandona lá….
— O mar de bronze sustentado pelos bois de bronze?
— “Mar” já é demais, né? E tem aquela porta lá para a entrada do rei… Eu lá quero uma porta só pra mim? Nem entro naquela porra. O negócio é religião moderna, Urias! Ao ar livre, na natureza, todo mundo pelado se comendo!
— Mas essa é a religião antiga, majestade!
— Antigo é verde, verde é bambu, bola na rede, pau no seu cu. Tá vendo? Seu argumento é inválido. Faz o seguinte: traz o altar de cobre lá do templo e coloca do lado desse aqui. Tira a pia grandona de cima dos boi, coloca numa base de pedra, sei lá. E empareda a tal da entrada real. Quando o rei da Assíria vier aqui visitar, eu quero que ele veja como o negócio aqui é modernidade. Meu Jesus…
— Quem?
— Hum?
— Nada. E aí vai oferecer sacrifício nos dois altares?
— Não, só no novo.
— Ué. E o antigo?
— Ah, sei lá. Vou ver. Talvez eu use pra macumba, pra adivinhação, não sei. Anda, Urias.
Urias, já de saco cheio do pior emprego do mundo, fez tudo que o rei mandou. E assim o rei de Judá, responsável pela proteção da religião oficial, profanou o Templo de Salomão.
Acaz morreu aos 36 anos de idade, e seu filho Ezequias subiu ao trono.

*   *   *

Uma última curiosidade sobre essa história… O autor do segundo livro dos Reis conta que na mesma época do cerco a Jerusalém, Rezim, o rei da Síria, invadiu a cidade portuária de Eilat (ou Elat), ao sul, expulsou de lá os judeus e levou sírios para viverem lá. Os sírios ainda viviam em Eliat quando o texto foi escrito, talvez uns duzentos anos depois.
Eilat foi onde os hebreus chegaram após a travessia do Mar Vermelho, quando fugiam do Egito. Davi reconquistou a cidade quando ela estava sob o domínio de Edom, e Salomão construiu o porto. Agora ela saía do domínio de Judá, e só seria repovoada por judeus em 1955. Nesse intervalo, passou de mão em mão igual tua irmã.
Eliat é hoje um balneário badalado no extremo sul de Israel.
Nada disso é muito importante. A curiosidade verdadeira é: essa é a primeira vez na Bíblia em que se usa a palavra “judeus” para referir-se ao povo de Judá.

A Eilat moderna

14 comments

  1. Que bálsamo!
    O JMC voltou em grande estilo. Deu pra notar um texto oxigenado, com referências atualizadas. Esse período sabático foi de Deus!

  2. Meu Jesu- opa, nada não. Feliz (e raro) dia em que vejo coisa nova neste RSS, mas esta foi uma surpresa nostálgica do caralho. Até tive que voltar e perder mais tempo do que gostaria lendo outros capítulos.
    Belas referências contemporâneas; e saudades do seu Javé. Nenhum escritor saca tão bem a personalidade de Javé como você, o que enaltece muito um e denigre o outro.

Deixe uma resposta