Depois de adotar um cachorro, a maior preocupação minha e de Ana Cartola foi encontrar um adulto responsável que cuidasse dele. Não encontramos ninguém disposto a fazer isso de graça, então decidimos buscar ajuda especializada. Baixamos a primeira temporada do Encantador de Cães e compramos livros desse cara e do Alexandre Rossi, o Dr. Pet. Vimos dois episódios da série, Ana Cartola começou a ler o livro do Dr. Pet e eu peguei o livro de Cesar Millan, o Fabio Puentes do mundo canino.
Logo percebemos a diferença básica. O livro do Dr. Pet se baseia em recompensas e punições. Nada de bater ou castigar o cachorro, só coisas para desencorajar certos comportamentos. Por exemplo: se seu cachorro arranca as roupas do varal quando você não está em casa, você pode colocar biribinhas (ou estalinhos, como dizem as pessoas sem cultura) sobre os prendedores de roupa. O cachorro puxa a roupa, começa a estourar biribinha pra todo lado, ele acha que Deus tá castigando e pronto. O Dr. Pet também ensina a fazer brinquedos caseiros, como esse aqui:

Ah, mas o livro do Encantador de Cães é outra pegada. Cesar Millan passaria tranqüilamente por imigrante ilegal, não fosse o botox:

“Dorme, dorme, dormedormedorme…”


Ele tem cara de picareta e é picareta mesmo. Quase tudo que ele diz se baseia na sua “energia” e na “energia” do cachorro. Você precisa transmitir o tempo todo uma “energia calma-assertiva” para que o cachorro entre num modo de “energia calma-submissiva”. Se você não quer que o cachorro passe por um determinado lugar, você cria uma parede invisível com a sua energia para bloquear a passagem. Se você não quer que o bicho pegue um objeto, você toma posse desse objeto usando a sua energia. Ele diz que a multidão de cães abandonados será a grande responsável por aumentar o karma ruim da nossa espécie. Péssimas energias. Dá vontade de ligar o cu dele no 220, pra ele ver o que é energia.
Mas nem tudo que ele fala é bullshit (algumas são bulldick; já falo disso). Nas poucas vezes em que ele resolve ser específico, dá dicas muito boas de como se comportar perto do cachorro para não criar um bicho ansioso, doido e mal humorado dentro de casa (basta eu). Ele recomenda chamar a atenção do cão usando primeiro o sentido mais aguçado dele, que é o olfato. A seqüência nariz-olhos-orelhas funciona bem: olfato primeiro, depois visão e audição por último. E é aí que chegamos ao bully stick, que é a razão de ser deste post.
Desde o começo do livro ele fala no tal bully stick, um tipo de petisco que ele carrega pra todo lugar que vai. Achei que fosse um ossinho, essas coisas, mas ele explica logo de cara: o bully stick é um pênis de touro desidratado. (Não, os caras não vão atrás de touros desidratados para cortar o pau deles. É o pênis que é desidratado depois de cortado. Prestem atenção.)

A cara de Cesar Millan não engana, ele curte mesmo um pinto. E quase toda página do livro há uma referência ao bully stick. Ele usa o pinto de boi para atrair a atenção dos cães pelo olfato, para conduzi-los, para acalmá-los. Gostei da idéia e resolvi experimentar o pinto. Procurei no Google, não achei nenhuma referência ao tal negócio aqui no Brasil. “Ainda não somos evoluídos e seguros a ponto de oferecer caralho seco aos nossos cães”, pensei eu. Ou então, pensei em seguida, talvez o negócio tivesse outro nome aqui, um eufemismo ainda mais obscuro. Como a internet não me ajudava a achar o produto, pedi ajuda a Ana Cartola. Ela ia à Cobasi mesmo, podia procurar o tal negócio lá.
Duvidei que ela fosse encontrar bully stick na loja. Eu já tinha pesquisado tanto e não tinha nem pista de onde comprar o bagulho no Brasil. Então me surpreendi quando recebi um SMS: “Adivinha o que eu achei aqui? VERGALHO BOVINO!” Em vez de inventar um jeitinho simpático para nomear o produto, os brasileiros resolveram chamar o negócio pelo nome mesmo. Fiquei espantado por minha esposa ter encontrado o que eu tinha procurado tanto e sem sucesso. Depois raciocinei: se ela consegue achar o meu, não vai achar o do touro, que é grandão?
À noite ela chegou em casa e demos o vergalho bovino para o Rondeli. Ainda não tinha visto ele tão enlouquecido com um brinquedo novo. Ele pegou o petisco, levou para um canto e passou a nos ignorar completamente; fomos dormir e ele nem ligou. Rondeli passou a noite inteira com o pinto na boca. Já pode trabalhar na televisão.

Sonhei que estava numa aula de pintura, com uma tela em branco na minha frente. O professor (que eu não via) dizia:
— Podem começar. Se vocês ainda não tiveram nenhuma aula de técnica, deixem o pincel correr movido pela magia negra.
Vou ali comprar material de pintura.

Alguns comentários e e-mails que recebi esta semana:

“Marco vc até que tem talento em narrativa popular. só que se vc usasse mais um pouco de termo e reverencia ao decreve-la por se tratar da bíblia sagrada, eu daria até uma boa nota, porem te avaliu como ‘0’ pelas inumera blasfémias”
“CAROS IRMAOS EM CRISTO. AS COISAS DE DEUS É COISA SERIA, NAO É PARA FICAR INTERPRETANDO A BIBLIA COM SARRISMO, TIPO:O que eu faço, Eliseu? — perguntou o rei — Mato os felasdaputa? QUE EU SAIBA A INTERPRETACAO DESCRITA NA BIBLIA NAO É ASSIM, COM PALAVRAS PEJORATIVAS. APOCALIPSE CAP 22. VERSUS 19 ( VEJA O QUE ESTA RESERVADO SE VC NAO SE ARREPENDER, E VOLTAR AS PRIMEIRAS OBRAS E LEVAR AS COISAS DE DEUS MAIS A SERIO.”
“Bem…. se uma mula foi utilizada para mostrar algo a Balaão… creio que….. com um pouco de paciencia poderei entender o que vc tenta mostrar de uma forma sacana a mensagem que deveria ser levada a sério, sou a favor de uma mensagem com um pouco de humor, mas me diga, pra que palavras de baixo calão. MAS SAIBA VC É UMA BENÇÃO. E VC SABE DISSO.”
“vcs são patéticos!!!!!”

Estou sem ânimo, disposição nem senso de humor pra responder a essa gente. Mas é bom saber que estamos voltando à normalidade por aqui.

Rondeli,
Este post não era para ser um post. Era para ser um vídeo de nós dois conversando. Bom, eu falando e você escutando, inclinando a cabeça, levantando as orelhas, essas coisas que cachorrinhos fazem. Pensei que ia fazer esse vídeo, publicar no YouTube, talvez ganhar algum dinheiro. Mas você colaborou com meu projeto? É claaaaro que não. Você não pára quieto. Seu único objetivo é entrar na casa. Já falei: o terraço é seu, a casa é minha. Vou precisar mijar tudo aqui dentro pra você entender isso?
Precisamos ter uma conversa franca entre machos. Eu sou macho, você também. Ainda. Ouvi gente falando em castração. Sua castração, não minha. Espero que você não fique tenso com isso, só tô avisando pra você começar a planejar sua vida. Se você pensava em ter filhotes, melhor pensar em outra coisa. Encontre um hobby pra se distrair. Um hobby que não seja roer os meus chinelos, claro. Se quiser, podemos arrumar um bichinho de estimação pra você. Uma lagartixa, sei lá… Quê? Não, eu não sou a favor de castrar você. Me solidarizo. Mas é que meu voto não vale grande coisa… Como? Claro que eu não sou castrado, porra! Só não apito nada mesmo. E sou gordo porque sou gordo mesmo. Pára de falar nisso, cazzo. É capaz de gostarem da idéia, ainda mais depois que eu falei em mijar tudo dentro de casa. Eu estava brincando, galera.
Vamos direto ao ponto, por favor? Seguinte: você ainda é novo aqui, tanto nesta casa quanto neste planeta. Então vou te explicar uma coisa que eu aprendi muito cedo e tem me ajudado desde então: se você é feio, precisa ser inteligente. Engraçado, pelo menos. Existe gente que é feia, burra e sem graça? Claro, de monte. Mas essas pessoas ainda têm o que fazer da vida: podem passar o dia reclamando no Twitter, ou fazer comédia stand-up. Um cachorro que seja feio, burro e sem graça vai parar num restaurante coreano — e não é pra trabalhar de garçom. Entendeu a diferença?
Você é feinho. Não tem nada que você possa fazer quanto a isso e eu não tenho dinheiro pra te pagar uma cirurgia plástica. Então chegamos a isso: você precisa ser inteligente ou, pelo menos, engraçado. Ontem eu vi você correndo atrás do rabo; isso não é legal. Correr atrás do rabo é a característica universal do cachorro burro. Na porta da escolinha para cachorros retardados tem um brasão com o desenho de um cachorro perseguindo o próprio rabo. Eu sei que você ainda é novinho e só fez isso uma vez (que eu tenha visto). Você pode argumentar que conseguiu morder o próprio rabo, e é verdade. Parabéns. Quer uma medalha? Quer que eu te chame de Ouroboros? Humpf.
Seja inteligente, Rondeli. Se preferir ser engraçado, não seja engraçado involuntariamente, porque isso é o mesmo que ser burro. Vir correndo na minha direção com o corpo de lado faz você parecer um caranguejo. É engraçado, mas involuntário. É estúpido.
Hoje você aprendeu que quando eu jogo a bolinha espero que você vá buscar ela. Já é um avanço. Só que você precisa aprender que a bolinha às vezes vai parar em algum lugar fora do seu campo de visão: atrás da sua casinha, por exemplo. Isso não quer dizer que a bolinha se esvaiu magicamente no ar. Com um pouquinho mais de esforço mental, você vai entender o mecanismo da brincadeira. Não é tão complicado assim.
Apesar dos sinais de alarme, boto fé em você. Esta é uma casa de pessoas inteligentes; vai pegar muito mal pra nós ter um cachorro burro. Não me decepcione.

Rondeli, o cão

"Cê me chamou de feio?"

*   *   *

Este é o ponto do vídeo em que minha mão entraria em quadro e eu diria “High five!”. Você ignoraria, eu diria “Muito cedo…”. Fade out, fim. Sucesso garantido no YouTube. Dinheiro de anúncios. Quem sabe numa próxima vez.
A prova de que eu tentei fazer o vídeo:

 

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Ah, outra coisa: tem essa história de um cara que tinha um cachorro e morreu. O cara, não o cachorro. Prestenção. O cara morreu, o cachorro foi até o cemitério e se deitou sobre a tumba do dono falecido. Ficou lá dias e dias, sem comer, sem beber, sem se mexer. Morreu de inanição. Então vamos fazer uma conta rápida: você deve ter uns dois meses de vida (a pessoa boa que te abandonou num quintal não teve o cuidado de deixar uma cópia do seu RG). Eu chego aos 36 anos daqui a 10 dias. É uma baita diferença, e você pode pensar que está em vantagem. Não está: quando eu chegar aos 50 anos, e estiver pensando em comprar um carro vermelho conversível, você provavelmente já terá se juntado à Lassie e ao Rin Tin Tin. Não é justo, eu sei, mas a vida não é justa. Porém, no caso improvável de eu ir primeiro, seria de bom tom você passar uns dias no cemitério, com uma cara solene e tal. Não precisa morrer nem nada. Só faz um drama, que é pro pessoal achar que eu era foda. Custa nada.
Se você morrer primeiro (que é, repito, o mais provável), não conto pra ninguém que você perseguia o próprio rabo. Combinado?

“Deus proverá” era a frase do meu pai. A frase é de Abraão, na verdade. Quando Javé pediu a ele que sacrificasse Isaque, seu único filho, Abraão nem piscou: acordou Isaque, disse que ia oferecer um sacrifício e os dois saíram de casa. No meio do caminho, meio desconfiado, Isaque perguntou onde estava o bicho que iam sacrificar. “Yahweh-yireh” foi a resposta de Abraão — Deus proverá. Yahweh-yireh é um dos nomes do Deus de Israel. Era esse o Deus do meu pai — não importava o quão difícil fosse a situação, não importava o beco sem saída em que a gente se metesse: o Deus dele sempre ia dar um jeito. E ele nem precisou ameaçar sacrificar um de nós.
Quando precisava correr, meu pai corria com a mão sobre o peito, para impedir que os documentos e o pente pulassem do bolso da camisa. É uma imagem recorrente nas minhas memórias mais antigas: meu pai correndo de mão no peito.
“O que que a gente faz agora, pai?”, eu perguntei quando minha avó materna morreu. “Eu não sei”, foi a resposta dele. Foi a primeira, talvez a única vez em que eu vi meu pai tão triste a ponto de não ter uma palavra de conforto para nós. Foi das poucas vezes em que o vi chorar, também.
Meu pai nunca teve um time. O engraçado é que ele gostava muito de futebol. Quando foi para a Congregação Cristã do Brasil, ele parou de ver televisão. Mas sempre que tinha um jogo passando ele parava um pouco na sala, comentava um lance qualquer, saía. Aos poucos essas paradas pra ver jogo foram aumentando: ele se sentava no braço do sofá para ver uma cobrança de falta, depois começou a ver replays, um tempo aqui, outro ali. Dizia que era ponta direita — “dos bons!” — do time da fazenda onde cresceu lá na Bahia. Eu acredito: depois da história do capoeirista, eu nunca mais ousei duvidar de nada que ele me dissesse.
Eu sempre tive insônia. Ficava na sala de madrugada vendo qualquer bosta na televisão. Lá pelas tantas, ouvia os passos do meu pai vindo do quarto. Ele entrava na sala de braços cruzados, meio encolhido de frio. “Dormir, Marco. Olha a hora.” “Já vou, pai.” Ele voltava para o quarto, eu ouvia os passos dele se afastando.
Meus irmãos nunca tiveram insônia. Dormiam no carro vindo da casa da minha avó, dormiam no sofá. Meu pai carregava eles pra cama. Lembro dele carregando minha irmã no colo quando ela tinha uns 12, 13 anos de idade, e quase o tamanho dele. Eu sentia um pouco de inveja: queria ter sono pro meu pai me carregar até a cama. Nunca tive.
Por volta dos 60 anos de idade, meu pai começou a usar óculos para leitura. Botava aqueles oclinhos pra ler a Bíblia. Quando estou na casa da minha mãe, entro no quarto dela e espero encontrá-lo sentado na cama de Bíblia no colo, encostado em um travesseiro apoiado na cabeceira, olhando pra mim por cima dos oclinhos.
Quando a gente era pequeno, meus pais compraram cobertores novos para mim e minha irmã (meu irmão nem era nascido, eu acho). Compraram e disseram que só iam dar os cobertores quando a gente se comportasse direitinho. Um dia eu combinei com a minha irmã de pedir a bênção aos dois antes de dormir. “Bença, mãe. Bença, pai.” Os dois se olharam, sorriram e nos entregaram os cobertores. Foi uma alegria imensa; alegria besta de criança. Fiquei com meu cobertor a vida inteira, trouxe ele comigo quando casei. Dia desses um cara tocou campainha aqui. Estava dormindo na rua com a esposa e um filhinho, queria saber se eu não tinha um cobertor. Dei meu cobertor a ele. É o que meu pai faria. Mas foi triste.
Meu pai caiu em muitos golpes, foi muito explorado por acreditar nas pessoas. E continuou acreditando. Inabalável.
Quando ia orar em voz alta na igreja, meu pai sempre começava a oração com “Santo Deus, Eterno Pai Celestial”. Depois de muitos anos, mudou para “Santo Deus, Eterno Pai Celeste”. Eu sempre quis perguntar o porquê da mudança; nunca perguntei. Achava mais bonita a métrica da primeira abertura.
Depois que meu pai saiu da igreja Batista, eu continuei. O pastor que me batizou, Obede, me contou uma história tempos depois. Havia um grupo formado por pessoas mais velhas da igreja que estavam descontentes com o pastor. Esse grupo andava se reunindo ora na casa de um, ora na casa de outro. Um dia foram se reunir na casa de um de meus tios e chamaram meu pai pra participar. Ele chegou, viu aquele pessoal lá, perguntou de que se tratava. “É sobre a igreja.” “E cadê o pastor?” “O pastor é parte do assunto.” “Então esperem aí que eu vou buscá-lo” (meu pai falava assim mesmo, “buscá-lo”). Ele foi até a casa do pastor, disse que havia uma reunião acontecendo e o levou até lá. Meu pai não suportava trairagem. Detalhe: de todos, ele devia ser o que mais discordava do pastor. Mas preferia falar isso na cara dele.
Ele sabia que não tinha nenhum controle sobre a própria vida. Quando alguém o convidava para qualquer coisa, por mais banal que fosse, a resposta do meu pai era sempre a mesma: “Se Deus preparar, estarei lá”. Quando fazia planos, terminava as frases com “mas Deus é quem sabe de todas as coisas”.

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Desde que meu pai morreu, meu maior medo é esquecer de como ele era. Coisas assim me ajudam a lembrar.