(II Reis 7)
No último capítulo, deixamos Eliseu em casa esperando pela chegada do rei, que vinha com o propósito de matá-lo. Só que, no fundo, o rei era um bom sujeito. Viera pensando na situação o caminho todo: o cerco a Samaria, a fome, a eterna briga com os sírios, e se deu conta de que Eliseu não podia ser apontado como único culpado. Então, quando chegou à casa do profeta, sua voz traía mais desolação do que raiva:
— O que eu posso fazer, Eliseu? Esperar pela ajuda divina? Javé mandou essa desgraça sobre nós. Você quer que eu acredite que ele fará algo para nos tirar dessa?
— Tenha fé, majestade. Javé manda dizer que amanhã você poderá comprar três quilos e meio do melhor trigo, ou o dobro disso de cevada, por uns dez gramas de prata.
O puxa-saco que viera com o rei não se conteve:
— Cê tá doido, Eliseu? Não há comida em Samaria, logo não haverá mais água, e você me vem com historinha? Mas nem que Javé fizesse chover trigo e cevada!
— Ah, é? Então eu lhe digo outra coisa: você vai ver isso acontecendo, mas não vai comer.

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No acampamento dos sírios, nas cercanias da cidade, reinava o silêncio. Já era noite havia algumas horas, e os soldados dormiam em suas tendas. Os encarregados da vigilância caminhavam com cuidado, para não acordar os colegas. Tudo estava muito tranqüilo, e a tomada de Samaria era questão de dias, talvez horas. Ou seria, se não soasse do céu uma voz tonitruante:
— Bu.

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Enquanto isso, do lado de fora dos muros de Samaria, quatro homens discutiam na escuridão. Procuravam, eles também, fazer silêncio, mas sem muito sucesso. Por mais que sussurrassem, as sinetas dependuradas em seus pescoços tilintavam ao menor movimento. Eram leprosos, e o acessório servia para avisar as pessoas saudáveis de sua chegada. E mesmo assim, vestidos em farrapos e totalmente excluídos da sociedade, ainda se achavam em situação melhor do que os samaritanos. Era essa, aliás, a razão da discussão: dois deles queriam entrar na cidade, os outros dois queriam ir ao acampamento sírio.
— Vocês estão loucos! Se a gente entra lá, os sírios matam a gente. Ainda mais se a gente chegar tocando sino, porra!
— E daí? Se entrarmos em Samaria, morremos de fome.
— E se ficarmos aqui fora, morremos de sede antes disso.
— Pois vão os dois. Nós vamos ficar aqui.
— Tá louco? Vão ficar aqui para morrer?
— Vocês acham mais bonito morrer nas mãos dos sírios?
— Tá bom, calem-se. Vamos deixar que a sorte resolva isso. Par!
— Ímpar!
— Ganhei. Ficamos aqui.
— Ganhou o caralho! Eu pedi ímpar, deu um, nós ganhamos.
— Mané um! Deu dois, é par. NÓS ganhamos!
— Peraí. Cê tá contando o dedo do chão também?
— É claro que sim! É MEU dedo!
— TODA vez você faz isso! Joga um dedo no chão, e aí ele vale ou não vale, dependendo do que for conveniente para você.
— Calúnia! Além do mais, agora é diferente…
— Por que é diferente, porra?
— PORQUE ERA MEU ÚLTIMO DEDO! Você acha que eu ia desperdiçar meu ÚLTIMO DEDO numa disputa besta?
— Ué, que diferença faz ter um dedo ou dedo nenhum?
— FAZ TODA A DIFERENÇA DO MUNDO! Como é que eu vou fazer pra coçar o…
— CALABOCA!
— Isso aí…
— OS DOIS! QUIETOS! Eu sou o líder, e digo que vamos ao acampamento dos sírios.
— Ué, desde quando você é o líder?
— Eu tenho sete dedos!
— Hmmm. É.
— É. Não dá pra discutir isso.
— Pois é. Tudo bem, vamos.
Esforçando-se ao máximo para não fazer barulho, os quatro leprosos se aproximaram do acampamento sírio.
— Está ouvindo alguma coisa?
— Nada. E você?
— Nada. Mas eu perdi a outra orelha anteontem, então não estou escutando muito bem.
— Que merda…
— Hein?
— NADA!
— Shhhhhhhhh…
— Shhhhhhhhh…
— Está muito quieto aqui, não?
— HEIN?
— MUITO QUIETO!
— SHHHHHHHHHHH!
— Pára de me mandar calar a boca, caralho! Olha em volta, idiota. Não tem ninguém aqui.
— Ué. Cadê os sírios?
— SÍRIOS!
— CALABOCA!
— Calaboca já morreu! SÍIIIIIIIIIIIRIIIIIIIIIIIIOOOOOOOOOOOOOOS!
— …
— …
— Taí. Ninguém.
— Diacho… Que será que aconteceu?
— Acho que eles ouviram as sinetas e saíram correndo.
— Com medo da gente?
— Só pode ser… Ei, isso quer dizer que somos heróis!
— É verdade! Vamos até a cidade para dar a notícia.
— Sim, sim. Mas antes, vamos comer.
Os quatro comeram e beberam até se fartarem, depois recolheram todo o ouro e prata que encontraram. Depois de esconder seu tesouro, voltaram a Samaria.
— Guarda! GUARDA!
— Ô, diabo. Que horas são? Quem está aí?
— Temos notícias dos sírios!
— Que badalo é esse? Putz, leprosos. Diz aí, cês querem uma mão? Hehehehe.
— Atomanocu, viado! Enquanto você se caga de medo aí, nós fomos até o acampamento dos sírios e expulsamos os putos. O acampamento está vazio, saíram correndo.
— Vocês expulsaram os sírios?
— Sim!
— Como, porra? Jogaram dedos neles?
— APAPORRA! Nós só temos onze dedos, caralho! Ao todo!
— Sei, sei… Vou mandar averiguar.
O guarda contou a história a seu sargento, que foi até a casa do tenente, que acordou um capitão, que telefonou para o coronel, que correu para procurar o general, que prontamente foi ao palácio dar a notícia ao rei.
— Sumiram, é? E se for mentira dos leprosos?
— Cortamos a língua deles. Aliás, basta dar um peteleco na nuca, eu acho.
— Hmmm… Sabe o que eu acho? Eu acho que eles saíram do acampamento para armarem uma emboscada. Sabem que estamos com fome aqui, uma situação desesperada. Quando sairmos atrás da comida, eles nos pegam e bum, era uma vez Samaria, Israel, tudo.
— Majestade, com todo o respeito… Estamos aqui há semanas, a situação não muda. Se ficarmos aqui dentro, morremos do mesmo jeito. Não é melhor ir lá conferir? Se for verdade, estamos livres. Se for mentira, ainda podemos contar com a piedade dos sírios. Só não dá para esperar piedade da fome.
— É, você tem razão… Quantos cavalos ainda temos?
— Cinco.
— No palácio?
— Na cidade toda.
— Puta merda… Bom, mande buscar esses cinco cavalos para que levem cinco de seus homens mais valentes.
— Sim, senhor.
— Não! Melhor: mande os cinco mais frouxos.
— Er… Sim, senhor.
— Bah, tanto faz. Faça uni-duni-tê, mande cinco homens para lá. Eles dão uma olhada em volta, verificam tudo. Se voltarem, nós abrimos os portões. Se não, será uma pena para as famílias, mas elas nem vão ter muito tempo para lamentar.
Os cinco homens foram até o acampamento e o encontraram vazio, como os leprosos haviam dito. Foram mais adiante, até o rio Jordão, e por todo o trajeto encontraram armas e utensílios largados pelos inimigos durante a fuga desordenada. Então voltaram à cidade e contaram a novidade ao rei, que ordenou que os portões fossem abertos. Os habitantes avançaram sobre o acampamento, e encontraram mantimento mais do que suficiente para saciar a fome que já durava dias. O restante foi vendido na cidade a preços baixíssimos, como previra Eliseu.
Foi um dia de alegria, exceto por uma baixa: o puxa-saco do rei fora colocado como encarregado dos portões. Na corrida para o acampamento após a abertura, a multidão o pisoteou e ele morreu. Ou seja: viu o milagre acontecer, mas não usufruiu dele. Mais uma vez, como previra Eliseu.

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Depois de toda a confusão, os leprosos ainda discutiam com o guarda da muralha:
— E nós? O que nós ganhamos?
— Porra nenhuma! E joguem suas mãos para o céu!
— FELADAPUTA!