Mas não me faltava mais nada para terminar de foder com porra da minha vida! Vejam só: sou um mendigo, moro na rua, vivo cheio de cachaça na idéia, ando todo mijado e cagado, sou apedrejado por moleques e corro a toda hora o risco de morrer queimado por algum nazista pouca coisa mais revoltado. É pouca desgraça? Pois então, agora piorou. Já conto.
Foi na semana passada, ou retrasada, sei lá. Acordei, joguei o papelão pro lado e estiquei o braço para pega a garrafa de pinga — café-da-manhã é uma refeição sagrada. Um calor filho da puta, e eu andando com um pé descalço no asfalto quente. Mas era preciso: dia de feira, de abastecer o bucho, ingerir vitaminas. Fui, então, até a feira para pegar minha xepa semanal. O pessoal já estava desmontando as barracas, e não tinha mais ninguém comprando nada. Faz parte do meu acordo com os feirantes: eles guardam alguma coisinha para mim que, em troca, não apareço durante o horário de movimento, para não espantar a freguesia. Fui chegando, encontrei o Zé Banana, que vende tomates.
— Aê, Zé véio! Alguma coisa aí pra mim?
— Xi, rapaz, hoje não. Aquele pessoal ali já pegou tudo.
Olhei para onde ele apontava. Um grupo de sete ou oito garotas e rapazes, todos com cortes de cabelo esquisitos e brincos no nariz, carregava sacolas de plástico cheias de verduras e legumes. O Banana me explicou: tinham percorrido as barracas pedindo sobras e, não contentes com isso, agora faziam a xepa na ponta da feira. “São frígans“, me explicou o Banana. São contra o capitalismo, o sistema, o caralho a quatro. Por conta disso, andam por aí catando coisas nas feiras, na rua, no lixo.
— Peraí, Banana. Cê tá me dizendo que esses viadinhos fazem a xepa porque querem?
— É isso aí.
Filhos de uma quenga… Eu aqui todo fodido, comendo o pão que o diabo amassou com o cu, e os cornos catando comida no lixo porque acham bonito. Moram numa casa aqui perto, com caminhas confortáveis, luz elétrica, água encanada. Que beleza! Queria ver é eles morarem na rua, os putos!
Fiquei olhando o movimento do grupo. Eles riam, conversavam, assoviavam música ruim. Depois de um tempo, uma das meninas notou minha presença. Abriu um sorrisão, veio andando na minha direção e me estendeu uma sacola cheia de verduras.
— Pode pegar, moço. Não faça cerimônia.
Olhei aquela sacola estufada, cheia de comida, e a barriga roncou. Mas o orgulho foi mais forte:
— ENFIA NO CU, VADIA!
E saí andando. É uma questão de princípio: não aceito esmola da concorrência.

No alto da colina, o prédio mais curioso lembra uma mesa: um grande bloco de concreto repousando sobre quatro colunas, com um imenso vão livre embaixo. Para mim, é a mostra mais assombrosa do engenho e sabedoria dos antigos. Lá dentro, grandes espaços vazios e muitos quadros nas paredes. Representam pessoas, paisagens, animais, objetos. Alguns não representam coisa alguma: são borrões de tinta, formas geométricas. Não gosto desses últimos; me perturbam um pouco. Os outros são bonitos. Passo minhas tardes aqui dentro, observando os quadros. Leio as assinaturas, sei o nome de todos os pintores. Gosto de um tal Monet. Suas paisagens são meio esfumaçadas e parecem, de alguma forma, mais leves do que as outras. É como olhar a avenida deserta lá fora sob o sol do meio-dia, a paisagem ondulante, deformada pela onda de calor que sobe do asfalto rachado.
Mas é claro que não posso falar sobre isso com os outros. Somos freegans, e devemos ter orgulho disso. Os quadros são fruto da velha sociedade capitalista, cruel e desalmada. A sociedade dos antigos, nos ensinam os mestres, foi construída com base na opressão e na exploração do homem pelo homem. As pessoas trabalhavam para consumir de forma descontrolada, adquirindo desejos criados e impostos pelo sistema dominante. Havia o conceito de dinheiro, pedaços de papel e metal que representavam valores arbitrários. Pessoas matavam e morriam pelo dinheiro, famílias se desintegravam, nações entravam em colapso, populações eram dizimadas. Havia infelicidade, insegurança, depressão.
Então veio a Grande Revolução Freegan. Os primeiros freegans eram ridicularizados por suas idéias, avançadas demais para aquele tempo. Viver fora do sistema parecia loucura. Mas eles eram fortes, confiantes, e sua convicção influenciava cada vez mais pessoas. O grupo cresceu, cresceu, e acabou tomando o poder em várias partes do mundo. A antiga cidade de São Paulo, onde vivemos hoje, foi declarada Nação Freegan Independente, e suas fronteiras com o resto do país, ainda chafurdando no capitalismo, foram fechadas. O nome antigo, que guardava relação com a antiga religião (opressora e aliada ao capitalismo) foi trocado por Oásis. Isso foi há muitos anos, ninguém sabe ao certo quantos. Os mestres dizem que Oásis é a pérola freegan do mundo, que devemos nos orgulhar de nosso país livre das amarras capitalistas. Eu sei que devia pensar como os outros, viver feliz, enfim, ser um verdadeiro freegan. Só que não consigo.
Quanto mais eu ando pela velha cidade e vejo as obras dos antigos, mais questiono o modo de vida freegan. As ruínas da avenida lá fora, por exemplo, devem ter sido prédios belíssimos, espantosos. As carcaças enferrujadas um dia foram automóveis, cortando velozmente as ruas da cidade. Imagino a agitação, as luzes, as cores, o movimento. Sim, somos mais saudáveis e mais conscientes.
Mas valerá a pena? O que plantamos já não basta para nosso próprio sustento. Alguns dissidentes abandonaram o vegetarianismo, e saem à noite para caçar cães, capivaras, gatos, ratazanas do tamanho de gatos. De tempos em tempos, helicópteros de entidades internacionais sobrevoam a cidade, lançando caixas com mantimentos que são disputadas a tapa. Os mestres, que tanto falam em orgulho freegan, nada dizem sobre a ajuda internacional. Para mim, é uma aceitação tácita de esmolas. Somos os parasitas do mundo.

Como vocês sabem, sou um feliz matriculado na Universidade Bernardinho. Estamos de férias agora, mas nossa professora de Português nos quer na ponta dos cascos: determinou dois temas para que alguns alunos discorressem em seus blogs. Depois de publicado o texto, um outro sujeito faz a crítica. O negócio é que o prazo para escrever vence hoje, e ainda não consegui decidir de qual tema vou tratar. Assim sendo, apelo para vocês. Os temas:
1. Promessas de Ano Novo: tema bastante amplo que pode ser desenvolvido em diferentes níveis: pessoal, nacional, internacional, político, social etc.
2. Freegans: pessoas que procuram viver ao máximo à margem da economia. Para saber mais, leia esse texto.

O que vocês preferem? O tema mais votado será maltratado por mim.