(II Reis 5)
— QUÊ?! — enfurecido e assustado, o rei de Israel arranca mais um chumaço de cabelos da lateral da cabeça.
— É isso mesmo — responde o mensageiro, sem alterar o tom de voz.
O rei desamarrota a carta como pode e a relê. Não há dúvida, é aquilo mesmo: o rei da Síria quer que ele cure de lepra um comandante de seu exército. E não é qualquer comandante: trata-se de Naamã que, além de herói sírio, é também muito querido entre os partidários dos profetas de Israel, já que foi de seu arco que saiu a flecha que feriu e matou o rei Acabe. Pelo menos era isso que se dizia por aí, e Naamã não desmentia. Enfim, uma figura importante de um reino vizinho com o qual Israel mantinha relações delicadas.
— Mas será que esse puto de merda está pensando que eu sou Deus, porra? Como é que eu vou curar esse milico? Assoprando a lepra dele?
— Alguém falou em curar?
— Eliseu! Chegou em boa hora! Imagine que…
— Eu sei, eu sei. O rei da Síria. Naamã. Lepra.
— Como você sabe?!
— Um negócio novo que eu estou testando. Viagem astral, coisa de maluco. Saio do meu corpo, ando por aí bisbilhotando. É legal.
— Parece coisa de espiritismo barato…
— O senhor já ouviu falar na história das ursas, majestade?
— Tá, tá. Desculpe. Você pode me ajudar?
— Vamos ver.
Tudo um mal entendido, claro. Naamã tinha uma serva israelita, uma menina que havia tomado como prisioneira numa de suas incursões contra Israel. A menina o aconselhara a procurar o grande profeta Eliseu. Naamã conversou com o rei, que passou o recado para um, que o passou para outro, que o levou adiante. Quando chegou ao mensageiro, a mensagem já estava distorcida, e Eliseu fora trocado pelo rei de Israel.
Desfeito o engano, a resposta foi enviada ao rei sírio: Eliseu aceitava o encargo. Dias depois, Naamã chegou a Israel. Todo paramentado e engalanado, montado num cavalo imponente e acompanhado por um cordão de puxa-sacos de altíssima estirpe, o comandante parou na porta da casa de Eliseu. Vendo aquele aparato todo, o profeta não resistiu: em vez de sair para cumprimentar tão ilustre figura, como era de se esperar, mandou seu empregado receber Naamã.
— Seu Naamã, sou empregado do profeta Eliseu.
— …
— Ele mandou dizer que é pro senhor mergulhar sete vezes no Jordão.
— …
— …
— É isso?!
— Xeu ver… Sim, é isso. Nem seis, nem oito.
— MAS QUE GRANDE FELADAPUTA ESSE SEU PATRÃO DE MERDA! Eu venho aqui esperando que o puto se digne ao menos a me receber, a fazer uns passes, umas pajelanças, um troço qualquer para me curar, e o que ele faz? Fica coçando o cu lá dentro enquanto um bosta qualquer vem me dizer pra ir nadar no Jordão. No Jordão! Os rios Abana e Farpar, lá em Damasco, são melhores do que esse córrego sem vergonha. Se é pra mergulhar, mergulho em casa, não viajo até este lugar besta!
Emputecido, o comandante deu meia-volta, disposto a voltar à Síria. Foram seus empregados que o dissuadiram:
— Comandante, se o profeta mandasse o senhor fazer alguma coisa complicada, o senhor não faria?
— Ah, depende. Sei lá. Esse puto.
— Ô, comandante… Ele só falou pro senhor tomar um banho no rio. Custa?
— Mas ele precisava me humilhar desse jeito? Mandar um empregado falar comigo, já se viu?
— Custa?
— …
— Custa?
— PUTA QUE PARIU! Cadê minha toalha? Dá aqui. Vamos ao Jordão.
Seguindo as instruções do profeta, Naamã mergulhou sete vezes no rio. Quando saiu, sua pele, que já estava quase toda branca, primeiro estágio da lepra, havia voltado à cor e textura normais. Macia, hidratada, firme, sedosa, um pêffego. Envergonhado, o militar voltou à casa de Eliseu.
— Profeta! — ele gritou do quintal — Agora eu sei que Javé, deus de vocês, é o fodão mesmo. Permita que eu lhe dê um presente em sinal de gratidão e também como pedido de desculpas por minha impertinência.
— Deixe isso pra lá, Naamã. Vejo que está curado e fico feliz. Isso basta. Pode voltar para sua casa.
— Hum. Permita ao menos que eu leve duas mulas carregadas de terra.
— Ué, a terra é de graça. Mas para que você a quer?
— Cada deus tem sua terra, não é? Baal na Babilônia, Dagom na Filistia, Javé em Israel. Então. Vou levar terra de Israel para a Síria, para poder adorar Javé sobre ela.
— Idéia besta… Bom, leve a terra. Não há problema.
Eliseu voltou para dentro de casa e Naamã seguiu seu caminho para a Síria, de pele limpa e convertido à religião israelita. Um final que seria perfeito, não fosse a ganância de Geazi, o empregado de confiança de Eliseu. Ao ver que o patrão recusara qualquer pagamento pelos serviços prestados, Geazi quase se rasgou de ódio. Determinado a tirar algum proveito da situação, saiu no rastro de Naamã, alcançando-o já na estrada, fora da cidade.
— Que aconteceu?
— Nada não, seu Naamã. Bobagem. Uma coisinha besta. Um negocinho de nada. Uma bestagem mesmo. Xi, nem vale a pena falar. Coisa pouca.
— Fala, diabo!
— Bom. Assim que o senhor saiu lá da casa do patrão, chegaram dois profetas de longe, lá das montanhas de Efraim, aquele sertão brabo.
— Hum?
— Aí o patrão me mandou aqui para ver se o senhor teria como emprestar duas mudas de roupa e uns quilos de prata. Coisa pouca. Trinta quilos, sei lá. O que der.
— Mas está vendo só? Eu me ofereci para pagar, seu patrão não aceitou. Agora vem uma situação assim. Vê como as coisas acontecem? Meu filho, leve logo sessenta quilos de prata, que eu ainda acho pouco.
— Arredonda pra cem, então.
— Não abusa.
Geazi voltou à cidade feliz da vida, acompanhado por dois empregados de Naamã para ajudá-lo a carregar a prata. Quando chegou, guardou o presente do comandante em sua casa e dispensou os dois ajudantes. Ia voltando para dentro quando ouviu a voz de Eliseu. Seca.
— Aonde você foi?
— Eu? Fui? Ah! Nada. Nada não. Nada mesmo. Fui ali. Ali, depois lá naquele outro lugar. Comprar cigarro e tal.
— CORNO MALDITO! Meu espírito estava ao seu lado enquanto você negociava com Naamã. Será que você não viu que eu recusei o pagamento?
— …
— HEIN?
— Hã?
— FELADAPUTA! Você quer a prata de Naamã, as roupas dele? Você deseja ter essas coisas?
— Pois é, patrão.
— Tudo bem, então.
— Cumé? Tudo bem?
— Tudo bem, claro. Aliás, Naamã deixou uma coisa aqui e eu vou dá-la a você. Adivinha o que é?
— Hmmmm… Ouro?
— Não…
— Pedras preciosas?
— Não…
— iPod?
— Não…
— Ô, patrão, não agüento de curiosidade! O que foi que Naamã deixou pra mim?
— LEPRA!
Ao sair da casa do patrão, Geazi já tinha a pele toda esbranquiçada e quebradiça. Dali a uns dias, teria de buscar a bunda na esquina quando peidasse.