Guerra contra os moabitas

(II Reis 3)
— Mandem buscar um músico.
— Um músico, Eliseu? Er… Que tipo de músico?
— Músico, músico! Tocador de flauta, harpa, berimbau, pandeiro, violoncelo, qualquer diabo.
— …
— Que foi? Vocês querem que eu resolva essa parada ou não?
— Claro que queremos, Eliseu!
— Pois então. Penso melhor com música.
Os três reis se entreolharam sem entender nada, deram de ombros e ordenaram a seus oficiais que saíssem em busca de um músico, rápido. Os reis Jorão, de Israel, Josafá, de Judá, e Mané Chupeta, de Edom, junto com seus respectivos exércitos, já zanzavam havia sete dias pelo deserto rumo a Moabe. Era o melhor caminho para um ataque surpresa, já que o rei moabita não esperava um ataque pela fronteira edomita, ao sul. Os três reis haviam partido confiantes para a batalha: iam ensinar uma lição àquele pilantra que, ao receber a notícia da morte de Acabe, decidira não cumprir mais suas obrigações. Agora estavam no meio do deserto, sem água, acompanhados de soldados cada vez mais inquietos. A idéia de procurar um profeta viera do piedoso Josafá. Eliseu relutara em vir, e por fim concordou. “Mas só porque foi Josafá que chamou”, fez questão de ressaltar. Se, depois de tudo isso, a solução exigia que um sujeito cantasse para o profeta, que assim fosse.
Horas depois, apareceu o músico.
— Toca aí, rapaz.
— O que os senhores querem ouvir?
— Sei lá. Improvise aí qualquer coisa. Que diabo de instrumento é esse?
— Um cambão de foles, majestade.
— Ah… Bom, vai tocando aí.
— O senhor manda.
Depois de afinar seu estranho instrumento, o músico ensaiou alguns acordes e começou a tocar e cantar:
Quando Javé te desenhou
ele tava namoraaaaaaaaaaaando
Quando Javé te desenhou
ele tava namoranduuuuuuuuu
na beira do maaaaaaaaaaaaar
na beira do mar mortô
na beira do maaaaaaaaaaaaar
na beira do m…

— OK! CHEGA!
— Não gostou, seu profeta?
— Que porra de música é essa?
— É de minha autoria, e exijo respeito. Essa canção ainda vai fazer muito sucesso.
— Sucesso onde, rapaz? Só gente muito estúpida agüentaria ouvir isso. Chega, basta! A inspiração já veio. Javé ordena que vocês cavem muitas covas em todo o leito seco desse riacho. O bicho vai se encher de água rapidinho.
— Tá. Conta outra.
— Conto, seu bastardo sem fé: assim como é fácil para Javé fazer surgir água do nada, também é fácil para ele dar a vocês a vitória sobre Moabe. Vocês vão arrasar as terras deles, destruir suas cidades, cortar todas as árvores frutíferas, aterrar todas as fontes de água e cobrir de pedras todas as plantações.
— Pô, nem precisa tanto. O cara só deixou de pagar uns impostos. Basta ganhar a guerra e pronto.
— Isso é que você diz, Jorão. Javé ordena que Moabe seja arrasado, e é isso que vocês vão fazer.
— Petulante…
— OLHA QUE EU CHAMO AS URSAS!
— Tá, tá!
Os reis ordenaram que os soldados cavassem covas no leito do rio seco, conforme as ordens de Eliseu. No dia seguinte, logo de madrugada, uma massa de água veio da direção de Edom, cobrindo o chão. Era uma cena linda de se ver, ainda mais com o reflexo vermelho do sol irradiado pela água cristalina.

* * *

— Percebeu o truque?
— Que truque?
— Sempre que esse cara não sente firmeza num capítulo, trata logo de inverter a seqüência narrativa.
— Como é?
— Olha lá, começou com Eliseu pedindo o músico, só depois foi contando o que aconteceu antes.
— Uia! É mesmo! Que truque manjado, rapaz…
— Pois é.
— E agora?
— Agora ele deve ir quase lá pro fim da história e vir voltando até a narrativa encontrar o ponto onde parou.
— Será?
— Vai vendo.

* * *

Encurralado em Quir-Heres, capital do reino, o rei Mesa bate a cabeça na parede e se amaldiçoa por sua temeridade. Tudo o que precisava fazer era mandar cem mil cordeiros e cem mil carneiros anualmente ao rei de Israel. Considerou a morte de Acabe uma boa oportunidade para revoltar-se deixar de enviar o pesado tributo. A reação israelita veio célere: aliado a Judá e Edom, o rei Jorão, filho de Acabe, decidiu atacar pelo sul. Quando Mesa soube, os exércitos das três nações inimigas já estavam bem próximas à fronteira. Mandou convocar às pressas todos os homens do reino e começou a se preparar para a batalha.
Mesmo em menor número, Moabe teria chances de vencer. Um erro de cálculo, porém, desencadeou o massacre: ao verem aquela mancha vermelha no meio do deserto, perto do acampamento inimigo, deduziram que se tratava de sangue, e que os três exércitos haviam se desentendido e massacrado uns aos outros. Aproveitando essa suposta divisão do outro lado, os soldados moabitas partiram para o ataque em campo aberto. Só quando já estavam muito perto, e já era tarde demais, notaram que a mancha vermelha era o reflexo do sol nas águas de um rio que só deveria estar cheio na época da chuva, muitos meses depois.

* * *

— Viu? Viu?
— Shhhhhhhhhh…

* * *

O engano fora fatal. Os israelitas perseguiram o exército de Moabe, matando quase todos os soldados. Agora o território moabita estava devastado pela ferocidade inimiga: fontes soterradas, plantações cobertas de pedras, árvores derrubadas, animais de médio porte estuprados.
Desesperado, ouvindo os gritos de guerra dos israelitas e seus aliados do outro lado dos muros da cidade, Mesa olhava em volta e procurava uma maneira de escapar daquela situação. Tentou enviar setecentos homens que haviam sobrevivido ao ataque para romper as linhas inimigas, de modo que pudesse fugir para a Síria. Não deu certo. Só lhe restava mesmo o auxílio sobrenatural.
— Filho, venha cá.
Após proferir uma breve prece, Mesa imolou seu filho e herdeiro do trono nas muralhas da cidade, como um sacrifício a Quemos, seu deus. Aterrorizados com a cena, os israelitas fugiram.

* * *

— Acabou?
— Que nada! Agora ele vai dar uma de sabidão. Olha só.

* * *

Ao ler a Bíblia, temos a impressão de que os israelitas consideravam Javé como único Deus do universo, e os deuses de outras nações como meros ídolos. Esse final da guerra contra Moabe parece sugerir algo diferente: assim como acontecia em todas as regiões, os israelitas também parecem acreditar numa espécie de democracia sobrenatural, com cada deus exercendo influência sobre um determinado território. No Asimov’s Guide to the Bible, Isaac Asimov diz que esse modelo de crença, chamado henoteísmo, era mesmo muito comum na época. Dessa forma, a retirada repentina do exército de Israel não teria sido motivada pelo terror diante da barbárie do rei moabita, mas sim de um medo autêntico da ira do deus Quemos, já que estavam em seu território.

18 comments

  1. /,
    — Que porra de música é essa?
    — É de minha autoria, e exijo respeito. Essa canção ainda vai fazer muito sucesso.
    — Sucesso onde, rapaz? Só gente muito estúpida agüentaria ouvir isso.
    Muito bom, concordo com Eliseu.
    Beijim
    PS. entrolharam e exércritos.

  2. animais de médio porte foi o melhor!
    O henoteísmo é explícito em Gênese e êxodo. Me parece que as exortações à Javé como único Deus são só uma campanha de fidelização (o que Javé faz, nenhum outro faz). Interessante é descobrir que essa idéia ainda durou até depois de Elias…

  3. não tem muito a ver com o post. não sei s eestou dando notícia antiga, mas existe um jogo muito legal em flash na net chamado Bible Fight, uma espécie de street fighter com personagens da bíblia. Um dos golpes especiais de jesus é fazer cair em cima do adversarios diversos paes e peixes.
    procurem, vale a pena!

  4. “(…) Mané Chupeta, de Edom, junto com seus respectivos exércRitos…”
    Corrige isso aí, Marco. Mais um texto que segue o padrão JMC de qualidade. E, realmente, Desenho de Javé é dose de agüentar…

  5. Hum, to vendo que hoje é dia de testes…
    O bg ficou simpático, mas gera uma faixa branca entre os posts.
    Na pagina de abertura, os banners do submarino e do adsense no topo estão invadindo a área do dos posts e na coluna das esquerda, o adsense vertical (esqueci o nome desse layout) também invade a area de publicação.
    A linha do user+horario+comments está desalinhado com o post…
    Se eu tenho soluções? Nenhuma! 😀
    Ah, qual é esse plugin que anuncia: ” Você veio do Google procurando por …” ?
    []´s, velhinho!

  6. Foi o bardo de Asterix, o gaulês, que cantou para o Eliseu?
    E esse negócio de sacrificar inocentes devia ser um costume arraigado naqueles tempos, hein? Os deuses são gente boa, que gostam muito de sangue… Vai ver, o verdadeiro Deus é o Drácula.

  7. Quando Javé te desenhou
    ele tava namoraaaaaaaaaaaando
    Quando Javé te desenhou
    ele tava namoranduuuuuuuuu
    na beira do maaaaaaaaaaaaar
    na beira do mar mortô
    na beira do maaaaaaaaaaaaar
    na beira do m…
    ***********************************************Li esse post na semana passada, mas toda vez que lembrava, ria sozinha em casa feito uma descontrolada. Só não supera Abel cantando “Segura na mão de Deus”.
    Um dos melhores dos últimos tempos…

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