— Depois vamos à casa de Elias. Ele é safadinho, viu?
Quem fala é Marta, prima de minha mãe. Elias é meu tio-avô, irmão de minha avó materna. Ela, nascida em 1917, morreu em 1995. Ele, de 1911, mora sozinho e se mantém lúcido e rijo. Mora numa casa simples, prepara suas refeições, e conta com apoio dos filhos e netos, que sempre vão verificar se o velho precisa de alguma coisa. É um ancião que vive o presente, o que tira boa parte da graça de se conversar com alguém dessa idade. O assunto constante são seus 96 anos de vida e o fato de se virar tão bem sozinho.
— Quem tem filhos e netos tem amigos. No resto, não confio.
Ele conta que já teve dinheiro furtado diversas vezes, daí a desconfiança.
A visita é breve. Mais tarde, já na casa das outras tias, comentamos a visita vespertina. Uma prima conta que ele é inocente, mostra a quem quiser seus esconderijos de dinheiro. Minha mãe pergunta quem anda roubando o dinheiro do velhinho.
— As meninas!
— Netas dele?
— Que nada! Elias é safado — é a segunda vez que aplicam o adjetivo a meu venerável tio-avô. — Paga dez reais pras meninas sentarem no colo dele!
As tias são Antônia e Valdete. Antônia tem 84 anos e nunca se casou. Vaidosa, tinge os cabelos desde os tempos em que trabalhava na indústria têxtil, pinta as unhas de vermelho e usa óculos escuros. Valdete, mais nova e discreta, é casada com Virgílio. Os dois têm um filho e sete filhas. Virgílio teve trombose há algum tempo, quase morreu. Ficou paralítico por um tempo, agora anda com dificuldade do sofá para a cama, e não mais do que isso. Tem um sorriso bonito e olhar inteligente. Tia Valdete conta:
— Está aí sem nem poder andar direito, mas muito lúcido. Está melhor de memória do que eu.
— Melhor isso do que ter um homem doido e correndo pela casa, né?
Ela ri de minha observação. Depois fala dos filhos. Fala de Sócrates, conhecido na família como Kid, único filho homem. Sócrates era também o nome do pai de Virgílio. O Sócrates atual tem três filhos: Sócrates, Virgílio e Mateus. Uma de suas irmãs chama-se Virgília. Muitas outras se chamam Maria. Por um momento, sinto-me como um Buendía de volta a Macondo.
Virgílio foi professor durante muitos anos, e diretor de diversos colégios da região. É apaixonado por História. Ele pergunta meu nome. Fica encantado ao constatar que é nome de imperador romano. Mais tarde, me apresenta um primo de 19 anos de idade.
— Marco Aurélio, esse é Augusto César. Seu colega!
Fico sabendo que um neto de uma das primas da minha mãe teve problemas na escola. Batia nos colegas. A professora o colocou para sentar na cadeira dos bobos, porque só meninos bobos batem nos outros. O moleque, parece, tomou jeito. Outro primo, esse de 17 anos, lembra que em seus tempos de pré-escola a professora o colocava para sentar de frente para uma imagem de Cristo sempre que ele aprontava alguma. Ele conta que se revoltava, chorava e gritava:
— Eu ódeio Jésuis!
Na casa de outra prima, tomamos sorvete sentados a uma mesa no quintal. Tia Antônia está pensativa. Depois de um tempo, diz:
— Parece um sonho… Não é verdade, Ana Maria? — Ana Maria é minha mãe — Nós todos reunidos aqui depois de tanto tempo, não parece um sonho?
— Parece sim, titia, eu estava mesmo pensando nisso.
— Parece um sonho, mas não é. É uma bênção de Deus, através desse careca aí.
Este careca aqui agradece, e nem se importa de ser chamado de instrumento divino.
Marta nos leva para um passeio pela cidade. Conhecemos o bairro em que minha avó morou. Ao que parece, ela e meu avô não sossegavam, e moravam em várias casas.
— Donata era meio rústica — diz tia Antônia.
Visitamos as fábricas de tecidos da cidade. Minha avó trabalhou em duas delas. Durante a Segunda Guerra Mundial, chegou a costurar fardas para a FEB. Hoje, diante da concorrência chinesa, a indústria têxtil de Estância busca alternativas. Uma das fábricas investe em cosméticos. Ainda não deu certo.
Estância é uma cidade cheia de igrejas. A catedral é dedicada a Nossa Senhora de Guadalupe. As casas mais antigas têm fachadas lindas, todas cobertas de azulejos portugueses. As mais novas são pintadas de cores que Marta define como “exuberantes”.
Visitamos o cemitério. Vejo os túmulos dos meus bisavós, pais da avó Donata, e de Sócrates, pai de Virgílio. A família de minha avó tem suas origens em Lagarto, cidade que fica no meio do caminho entre Aracaju e Estância, só que mais para dentro. De volta a São Paulo, descubro que o jornalista Joel Silveira nasceu em Lagarto; parece que Silvio Romero também. Serão parentes meus?
Volto de Estância sabendo mais sobre minhas origens. Digo a Virgílio que pretendo voltar em breve.
— Quando voltar, já vai me encontrar caminhando — ele garante.
Decido reincluir o Gois na minha assinatura, e foda-se se o nome fica muito grande.