Além dos fundamentalistas, agora tenho que agüentar esse tipo de coisa:

Profundo mau gosto, essa de fazer piada com criança anencéfala. Se v. fosse ainda aquele adolescente com cabelo que anda por algum lugar desse sítio, ainda ia. Qualé a próxima, sacanear anões? Fazer piada racista?
Por favor, põe logo outro de seus posts geniais nesse site, vai, para que não seja essa nota infeliz a apresentação para os neófitos.
(SLeo)

Pronto. O primeiro anencéfalo já se manifestou. Virão outros?

Nos anos 80, todo mundo se horrorizou com a divulgação da notícia: crianças nasciam sem cérebro em Cubatão. O ar da cidade que então ostentava o título de Mais Poluída do Mundo começava a causar danos inesperados. Pobres crianças descerebradas: um desperdício de vida, uma tristeza imensa para os pais. Afinal, para que serviria uma criança sem cérebro?
Mas eis que surgiram os blogs…

Vocês me fazem o favor de divulgar o lançamento do Balde de Gelo?




Paulistas, cariocas: não nos deixem sós! Eu e Daniela contamos com vocês.

Com esse negócio de blog, alguns amigos gostam de tirar sarro da minha cara chamando-me de celebridade. É ridículo, claro. Mas o que poucos sabem é que eu, Marco Aurélio, um dia pisei o solo sagrado da Ilha de Caras, a Meca das celebridades instantâneas. Como isso aconteceu? Já conto.
Em janeiro de 1996, tirei as primeiras férias remuneradas de minha vida. Recebi algo em torno de 900 reais, uma fortuna, para ficar vinte dias de papo para o ar. Eu tinha vestibular dali a uns dias, então poderia ficar em casa estudando ou viajar. Claro que escolhi a segunda opção. Resolvi ir a Angra dos Reis, sozinho (o Risadinha, que iria comigo, desistiu por algum motivo do qual não me recordo). Eu falava em Angra dos Reis e as pessoas ficavam espantadas: “Tá podendo, hein, negão?”. Mal sabiam elas que eu ia encarar sete horas de ônibus para me instalar na Pousada do Rio Bracuí, uma afiliada dos Albergues da Juventude no meio do mais absoluto nada (quase nada: dias depois, descendo o tal rio Bracuí de caiaque, descobri que ele desembocava numa praia linda e absolutamente deserta).
Foram oito lindos dias. Todas as manhãs eu me levantava, caminhava até a BR-101 e pegava um ônibus qualquer. Saltava em qualquer lugar que me cheirasse a praia e me embrenhava em alguma trilha. Invariavelmente saía nalgum lugar lindo, com águas transparentes e calmas, peixes coloridos, e o mais importante: pouca gente. O ponto culminante da viagem foi a chegada à Praia Secreta, graças à indicação do Fabiano, dono da pousada. Passei dias felizes na tal praia, achando ser o único vivente além dos pescadores a saber de sua existência. Minha fantasia de Robinson Crusoé foi por água abaixo quando resolvi ir à Praia Secreta num sábado: a areia estava tomada por niteroienses que ouviam um pagode fuleiro em alto volume, falavam gritando e preparavam um churrasco fedorento. Coisa triste.
Depois dessa decepção, resolvi que no domingo não iria a praia nenhuma. Afinal, raciocinei eu, todas elas deviam estar tomadas de niteroienses pagodeiros churrasqueiros gritadores. Foi assim que decidi fazer algo que evitara durante toda a semana: ir até a cidade de Angra dos Reis e fazer um passeio de escuna. Fui, pois. O preço me assustou: 45 reais, muito dinheiro para mim na época. Mas já estava lá, faltavam dois dias para eu voltar pra casa, que diabo. Paguei e embarquei na tal escuna.
Ah, o inferno! Na parte de cima do barco, jovens bonitos e de bem com a vida dançavam axé e exibiam seus corpos bronzeados e abdômens definididos. Eu, que era jovem e magro mas nunca fui bonito nem de bem com a vida, e além do mais detesto música de bunda, resolvi ficar na parte coberta. A companhia não era das mais animadoras: um inglês de meia idade, muito branco, usando bermudas cáqui um tanto apertadas, meias brancas até os joelhos ossudos e sandálias de borracha, tentava conversar com uma senhora baiana e gorda, de cabelos muitas vezes pintados e roupas floridas. A senhora trazia um moleque a tiracolo, e o capeta não parava quieto um só instante. Queria ver minha câmera, saber meu nome, onde morava, quantos anos tinha. “E o tamanho da minha pica, moleque, você quer saber?”, eu pensei (devia ter dito, mas acho que ia pegar mal). Havia também um casal de holandeses. Os dois estavam vermelhos devido ao sol e eram ruivos, de modo que pareciam duas pimentas silenciosas, sentadas no convés e olhando em volta com ar desconfiado. Além deles, os argentinos de sempre. E eu.
Estávamos todos ali quando chegou a guia para saudar nosso alegre grupo: uma perua de uns quarenta anos de idade, com um penteado super elaborado e óculos de sol dependurados no pescoço. Falava conosco e às vezes parava para dar ordens pelo rádio. O rádio não emitia qualquer ruído: ou seus subordinados eram excessivamente obedientes e dóceis, ou o rádio era só enfeite para fazer com que ela parecesse ocupada e importante. A sensação de falsidade aumentou quando ela nos apresentou o comandante do barco: um rapaz de quase dois metros de altura, muito forte e bronzeado, com dentes branquíssimos exibidos num constante sorriso. Durante o passeio, ele virava o timão para lá e para cá, e sorria o tempo todo. Ninguém me tira da cabeça que, nalgum recôndito do barco, algum crioulinho pilotava de verdade aquela joça, enquanto o bonitão se exibia e deixava molhadas as senhoras (não que ele tenha lançado as senhoras ao mar. Vocês entenderam).
A guia tinha um sotaque indefinível. Parecia ser brasileira, mas tentava afetar um sotaque meio argentino, talvez para agradar à maior parte da clientela. Com esse estranho acento, ela nos apontava os pontos importantes da Baía de Angra: a ilha do Dr. Pitanguy, a casa que fora do Ayrton Senna (e todos fizeram oh!, menos eu, que sempre achei o Senna um babaca), o iate do Roberto Carlos:


Aí eu me empolguei um pouco; afinal era o iate do Rei. O nosso comandante, porém, esclareceu:
— Esse aí é o Lady Laura II, o barquinho dele. É um bote salva-vidas perto do Lady Laura original.
Matutei um pouco sobre o que levaria um homem já entrado em anos a batizar seus iates com o nome da mãe. Não tive tempo para pensar muito, porém, porque chegáramos ao ápice de nosso passeio, anunciado de boca cheia pela guia:
— Señoras y señores… LA ISLA DE CARAS!
Todos voltaram os olhos para a ilha. O inglês e o casal de holandeses provavelmente não sabiam do que se tratava, mas lia-se nos olhos da baiana gorda e dos argentinos o êxtase do peregrino ao chegar à Terra Prometida, que mana leite e mel. Saquei a câmera (era só o que eu fazia, fotografar. Enquanto isso, meus coetâneos lá em cima sacolejavam seus belos corpos, numa dança do acasalamento ao som de música baiana) e registrei a imagem da Terra Sacra:

Mas, ao contrário de Moisés, não estávamos destinados a apenas ver de longe a Terra Prometida. Não! A guia anunciou que nós atracaríamos (não que nos atracaríamos. Vocês entenderam) e teríamos a honra, o deleite supremo, de almoçar na ilha abençoada. Não entraríamos nos domínios restritos, é claro: a parte atrás do muro era uma espécie de Santo dos Santos da frivolidade, e estava destinada apenas aos eleitos. A nós, indignos mortais, era permitido apenas tocar a fímbria do Paraíso. Fomos autorizados, então, a tomar banho de mar na minúscula praia da entrada da ilha e a almoçar no restaurante que ficava quase sobre o píer. Subi até lá com os outros e almocei sentado sozinho numa mesa distante, maldizendo minha decisão de fazer aquele passeio estúpido com pessoas mais estúpidas ainda.
Tendo terminado minha refeição, fui sentar-me na beira do píer para tirar umas fotos. Fui interrompido pelo vozeirão do nosso comandante:
— Ô, grande. Você fala, português?
— No, I don’t.
— Well… W-we needing a… A… You see…
— Pô, olha bem pra minha cara. Isto aqui lá é cara de gringo?
— Hein? Ah… Então. Você não pagou.
— Não paguei o quê?
— O almoço.
— Ué! Não tá incluído no preço do passeio?
— Claro que não!
— Porra, por que não me avisaram? Eu nem estava com fome, só comi porque pensei que fosse de graça. Quanto é?
— Treze reais mais a bebida. Paga no caixa.
Fui pagar, maldizendo mais ainda a decisão idiota de entrar naquela escuna. Dez minutos depois a falsa argentina veio me chamar para retornar ao barco.
— E vamos para onde agora?
— Ah, agora voltamos para Angra.
— Ufa, graças a Deus!
— Ué! Não gostou do passeio?
— Achei tudo uma merda. Mas não esquente, não é culpa sua.
Dei as costas e fui andando para a embarcação maldita. Durante toda a viagem de volta, além de ter que me concentrar para não ficar mareado (o mar resolvera ficar bravo de uma hora pra outra), ainda tive que fingir que não entendia as indiretas de nossa guia:
— Uma maravilha de passeio, não? Pois é! Todo mundo gosta. Quase todo mundo, pelo menos. Mas quem não gosta é gente que não sabe aproveitar a vida, vocês sabem como é…
E eu lá, firme, controlando a ânsia de vômito que o balanço do barco e as palavras da mulher me causavam.
Cerca de uma hora depois, estávamos em Angra dos Reis. Saí sem me despedir de ninguém (pra quê?) e fui pegar o ônibus que depois de mais meia hora me deixou na Rio-Santos. Na pousada, fui recebido pelo Fabiano:
— E aí? O que fez hoje?
— Passeio de escuna.
— Puta que pariu, aquilo é uma merda!
— Não me diga…
* * *

Ah, o vestibular: cheguei no dia da prova, sem estudar. Fui segundo colocado. Como disse Raul Seixas numa situação semelhante, é fácil ser medíocre.

(II Samuel 16)
Tendo enviado Husai de volta a Jerusalém, Davi continuou sua fuga. Depois de passar para o outro lado do Monte das Oliveiras, foi surpreendido pela presença de Ziba, empregado de Mefibosete, neto do finado rei Saul. Ziba trazia dois jumentos carregados de víveres: duzentos pães, cem cachos de passas e outros cem de frutas frescas, um odre de vinho. O rei chegou perto e perguntou:
— Eita, Ziba! O que você vai fazer com tudo isso?
— Enfiar no cu do curioso. Porra! Os jumentos são para você e sua família, a comida e o vinho são para a viagem.
— Puxa, fico até comovido.
— Bah, não enche.
— Cadê o Mefibosete, seu patrão?
— Ah, aquilo é um filho-da-puta traidor! Ficou em Jerusalém, diz que agora o trono será devolvido à família de Saul, quer dizer, a ele mesmo.
— Aleijado filho de uma quenga!
De uma quenga e daquele veado do Jônatas…
— COMO É? VOCÊ CHAMOU O JÔNATAS DE VEADO?
— Veado? Quem falou em veado? Eu falei foi finado.
— Hum. É bom mesmo. Bom, você é grosseiro e desagradável, mas pelo menos é leal. Eu sempre soube. Eu sou assim: olho na cara de um sujeito e já sei se ele tem caráter ou não.
— Sei, sei… Foi o que o senhor fez com Mefibosete, Absalão, esses caras?
— NÃO VEM AO CASO! Deixa eu continuar: tudo o que era de Mefibosete agora é seu.
— Quem disse?
— EU disse! Eu, o rei!
— Ah. Mas o rei agora não é Absalão?
— POR ENQUANTO!
— Se você diz… Bom, vou seguir meu caminho. Até logo.
Fazendo uma mesura irônica, Ziba afastou-se, e Davi continuou seu caminho, acompanhado pela comitiva. Quando chegou à cidade de Baurim, foi interpelado por um certo Simei, filho de um tal Gera, parente de Saul. Simei parou na frente do jumento do rei (vocês entenderam) e começou a berrar:
— FILHO DE UMA QUE-RONCA-E-FUÇA! MORDE-FRONHA! CORNO! FILISTEU! CORINTIANO!
O rei tentava contemporizar:
— Opa, peraí, que que há, também não é assim…
Mas Simei continuava gritando seus impropérios:
— ASSASSINO! MATOU TANTA GENTE DA FAMÍLIA DE SAUL, E AGORA JAVÉ TÁ TE CASTIGANDO, SAFADO! O REINO ESTÁ NA MÃO LÁ DAQUELA BICHA CABELUDA QUE É SEU FILHO, E VOCÊ TÁ NA MERDA! AHA, UHU, DAVI TOMOU NO CU! TODO MUNDO COMIGO!
— Aha, uhu, Davi t…
— Calaboca, Itai. Ô, Simei, acalme-se…
— NÃO TÔ TE OUVINDO! — tapou os ouvidos — LALALALALA-LA!
— Vai deixar, majestade? Vai deixar? IIIIIIIIIH, eu não deixava!
— Fica na sua, Abisai.
— Mané o quê! O cara tá te xingando e vai ficar por isso mesmo? Se você der permissão, eu vou lá e corto a cabeça do puto.
— Ah, é? E quem garante que não foi o próprio Javé que mandou esse mequetrefe vir me xingar? Acho que Deus não gosta mais de mim, e deve ter lá suas razões. Além do mais, o meu próprio filho quer me matar; o que esperar de um parente do falecido rei Saul? Deixa o cara gritar, tá no direito dele. Talvez um dia Javé tenha dó de mim e troque essas maldições por bênçãos.
Assim Davi continuou sua jornada, e por um bom tempo foi seguido por Simei, que jogava pedras, terra, e xingava. Davi, que até poucos dias antes fora soberano absoluto sobre todo o Israel, nunca passara por tamanha humilhação. Além do mais, a situação era muito embaraçosa para aqueles que o acompanhavam: o rei perdera seu trono e agora fugia sem rumo, desancado por um zé mané qualquer. Foi, portanto, com cansaço mais moral do que físico que a comitiva chegou ao rio Jordão.
Enquanto isso, Absalão transpunha as portas e entrava em Jerusalém. Husai, o espião enviado por Davi, foi encontrá-lo:
— Salve, majestade! Que beleza de cabelo, hein? E que túnica!
— Ué, ué! Que porra é essa, hein? Que porra é essa? Cadê a fidelidade ao seu amigo? Foi só o bicho pegar que você abandonou o cara?
Husai sentiu nojo ao ouvir Absalão referindo-se assim ao próprio pai, mas conteve-se:
— Mas não tinha outro jeito, majestade! Isto aqui é uma teocracia, é ou não é? Então! Eu fico do lado daquele que Javé escolhe. Eu servi o senhor seu pai durante muitos anos, e agora quero servi-lo. Bom, se o senhor quiser, é claro.
— Ué, ué! Pode ficar, oras. Pode ficar. Só não me atrapalhe.
— Fico muito grato, majestade.
— Tá, tá. Vá puxar o saco de outro. Aitofel! AITOFEL! Cadê esse putão safado?
— Aqui, majestade.
Com a chegada do conselheiro, todos se calaram. Aitofel fora respeitadíssimo durante o reino de Davi, havendo quem dissesse que tinha sobre o rei ascendência maior ainda do que a de Joabe. Para o rei deposto, as palavras de Aitofel eram como palavras do próprio Deus.
— Aitofel, aqui estamos. Entrei na cidade. Entrei na porra da cidade! Sou o rei! Viva o rei!
— VIVA!
— Mas, venha cá… Eu tenho que mostrar a esse povo quem é que manda, sabe? Não quero ouvir nego cochichando por aí que o outro era melhor e coisa e tal. Entende?
— Entendo, claro. O senhor está meio inseguro, é normal no começo…
— INSEGURO? Quem está inseguro? Eu sou o rei, tá sabendo? EU MANDO NESTA PORRA TODA! Inseguro, humpf. Sou o rei. O REI!
— Sim, sim. Desculpe, majestade, me expressei mal. Enfim, o senhor me pergunta o que fazer para demonstrar sem sombra de dúvida que é o chefe agora. É isso?
— Exatamente.
— Pois é fácil: durma com as concubinas de seu pai.
— Como é que é? Eu peço um conselho e você me manda comer as amantes do velho???
— É, ué. O senhor pode vir morar no palácio, assentar-se no trono, fazer caminhadas pelo terraço, nada disso vai adiantar muito: sempre poderá haver alguém que pense na possibilidade de Davi voltar. Mas se você tiver relações com as concubinas dele, vai ficar bem claro que agora é tudo seu mesmo, sem discussão.
— Hum… Acho que entendi. Comendo as mulheres do meu pai, deixo bem claro que rompi de vez com ele, que não o respeito. É isso?
— Isso, isso!
— Ah, nunca achei que seria tão fácil. Vou lá para o harém agora mesmo começar meu serviço.
— Er… Aceita uma sugestão?
— Usar camisinha? Nem precisa dizer!
— Não, não é isso. Seguinte: o negócio tem que ter impacto, sabe?
— Pô, Aitofel, eu me garanto!
— Eu sei, conheço sua fama, majestade. Mas eu tava pensando era num jeito de tornar isso um grande acontecimento. Peraí, já volto.
O conselheiro saiu e voltou com meia dúzia de servos.
— Ei, que é isso? Não preciso de ajuda não!
— Calma, majestade. Trouxe esses homens para montarem a tenda.
— Tenda? Que tenda?
— A tenda onde o senhor vai passar na cara as concubinas de seu pai.
— E vão armar essa tenda onde?
— No terraço do palácio, que é pra todo mundo ver.
— Aitofel?
— Sim, majestade.
— Você é um tarado, o maior pervertido que já conheci.
— Obrigado.
E foi assim que Aitofel acumulou uma pequena fortuna: vendendo ingressos para quem quisesse ver o novo rei dar demonstrações de seu vigor juvenil. A cada concubina que fodia no sentido literal, Absalão sentia como se estivesse fodendo mais um pouco seu pai no sentido figurado. Coisa triste de se ver, mas poderia ser pior: imaginem se fosse o contrário…
Aitofel filmou tudo e ganhou mais dinheiro ainda com a venda das imagens em lojas especializadas e pela internet. Enfrentou problemas com pirataria mais tarde, mas isso já foge à nossa história.