A volta de Absalão

(II Samuel 14:1-24)
Três anos depois do assassinato de Amnom, o rei Davi já tinha superado a morte de mais esse filho, e agora sofria de saudade de Absalão. O rei, orgulhoso, jamais admitiria isso. Mas não era preciso: Joabe, conhecendo Davi como ninguém mais, percebeu a que se devia a melancolia do rei, e pensou num plano meio maluco para reconciliá-lo com o filho sem que nenhum dos dois precisasse dar o braço a torcer. Para começar, procurou uma velha amiga em Tecoa, uma mulher muito sábia e dissimulada.
— Preciso da sua ajuda.
— Ah, Jô, você sempre precisa!
— Mas dessa vez o caso é muito sério, e exige disfarce.
— Xi…
— Nada de mais! Você só vai ter que se vestir de luto e ficar uns dias sem pentear os cabelos.
— Ué. Quem morreu?
— Seu filho.
— Você sabe muito bem que eu não tenho filho, Jô.
— Eu sei, eu sei. Essa é a história que você vai contar pro rei.
— Ah, sim. Daí o luto.
— Exato. O negócio tem que ser convincente. Você me ajuda?
— Como sempre.
— Obrigado. Agora vamos ensaiar seu texto, que é pra não sair nada errado.
No dia seguinte, sentado em seu trono, Davi recebia os súditos que haviam solicitado audiência. Estava com um ar distante, mal olhava para os que vinham ter com ele. Pensava em Absalão, filho tão amalucado, e talvez por isso mesmo tão querido. Onde estaria? Enquanto pensava no filho, anunciaram o próximo requerente, e entrou uma mulher toda de preto, descabelada, parecendo muito triste. Percorreu o corredor de cabeça baixa, chegou tímida aos primeiros degraus do trono e lançou-se com o rosto no chão:
— Ajude-me, meu rei!
— Ué. A senhora é baiana?
— Baiana? Não, por quê?
— Me chamou de “meu rei”…
— Epa. Não é o senhor o rei de Israel.
— Ah, foi nesse sentido que você disse… Aí sim. Mas diga o que você quer.
— Eu sou viúva. Meu marido morreu.
— Puxa. Viúva, o marido morreu, quanta desgraça… DEIXE DE OBVIEDADES, VAMOS À QUESTÃO!
— Er… Então. Eu tinha dois filhos. Um dia os dois saíram para trabalhar no campo, se desentenderam, começaram a brigar. Acabou que um matou o outro.
— Vixe.
— Pois é. Pior foi depois: a parentada toda começou a me importunar para que eu entregasse meu filho.
— O assassino?
— O meu filho, majestade. E o que eu poderia fazer? Eles querem apedrejar o menino. Está certo, ele matou o próprio irmão. Mas e eu, como fico? Perco meus dois filhos? Se eles pegam meu menino, acabam-se minhas esperanças e o nome do meu marido se perde. O senhor compreende a situação?
— Claro, não sou burro nem nada. É uma merda de situação, hein?
— Pois é. O senhor me ajuda?
— Sim, sim. Pode voltar para sua casa, que eu tomarei as providências.
— Tomará, né? Sei… Mas se acontecer alguma coisa, eu e minha família levaremos a culpa. O senhor fica inocente na história.
— Está me acusando de omissão…?
— Longe de mim!
— Humpf. Bom, façamos assim, então: se alguém for lhe encher o saco, traga-o aqui. Eu resolvo, pode deixar.
— Resolve, né? O senhor bem que podia pedir a Deus que não permita que nada aconteça…
— Pedir a Deus? O que você quer dizer com isso? Que não é o bastante, é isso? Quer exigir mais do rei, é isso?
— Mas de forma alguma!
— Grunf. Olha, você fique feliz porque hoje eu estou muito bonzinho. Quer garantias, é isso? Pois eu lhe garanto, e juro por Javé, que nada vai acontecer a você ou ao seu filho. Não seria justo. Pode ficar tranqüila. Está bom agora?
— Mas é claro! O senhor só me permite dizer mais uma coisinha?
— Ai meu saco… Fala, vai.
— Por que o senhor fez algo tão errado com o povo de Deus?
— Hã?
— Dizendo o que me disse agora, o rei condenou a si mesmo.
— HEIN?
— Ué! Não foi exatamente isso que aconteceu em sua família, majestade? Um de seus filhos matou o outro, e agora vive desterrado. Quem está morto, está morto, é como a água derramada na terra, nem Deus trás de volta. Mas o rei pode trazer um exilado de volta a Israel.
— Peraí, isso está me cheirando a texto decorado.
— Hum? Como? N-nada disso! Eu só vim aqui porque o povo me ameaçou, já disse. Então eu pensei: “Vou lá falar com o rei, a palavra dele é confiável como a de um anjo de Deus”. E agora o senhor prometeu que nada vai acontecer ao meu filho. Então fico muito agradecida, viu? Agora tenho que voltar, estou com a pia atulhada de louça, um monte de roupa pra lavar, o quintal…
— Pára, pára! Cê tá me enrolando.
— …
— Eu vou te fazer uma pergunta agora, e você vai me responder com sinceridade.
— Pode perguntar, majestade.
— Foi Joabe que enfiou você nisto, não foi?
— Neste vestido?
— NA SITUAÇÃO! NÃO ME ENROLE!
— Ah, na situação… Puxa, o senhor é mesmo feito um anjo de Deus…
— Foi o Joabe ou não foi?
— Foi! Foi! Mas não leve a mal, majestade. Ele só fez isso pensando no senhor, querendo resolver essa situação.
— Hum. Tá bom. Volte para casa. Com o Joabe eu falo depois.
Assim que a mulher saiu — ressabiada por ter sido descoberta tão facilmente — Davi mandou chamar Joabe:
— Mas e então, Joabe? Que presepada foi essa que você me aprontou?
— Ah, majestade! Eu só queria ajudar. Estou com saudade de Absalão…
— Está, é? Hum. Pois bem, vou fazer o que você quer: pode trazê-lo de volta.
Joabe, ainda imbuído do espírito teatral, não resistiu e inclinou-se até o chão.
— Deus o abençoe, majestade! Agora eu sei que o senhor está mesmo satisfeito com meu trabalho. Puxa, chegar ao ponto de atender a um pedido deste seu criado! Sinceramente, eu não esperava!
— Tá, tá. Vai lá e não me torra.
Para Joabe tanto lhe fazia se Absalão ficava em Gesur, se voltava para Israel ou se ia para o inferno. Mas com essa manobra ele fizera o rei trazer o filho de volta sem admitir em momento algum que sentia sua falta. Joabe foi a Gesur muito feliz com o sucesso de sua empreitada. Quando voltou com Absalão, porém, foi surpreendido pela atitude inflexível do rei:
— Trouxe o moleque? Está feliz? Que bom, fico feliz também. Só não me traga aquele mequetrefe aqui. Não quero mais vê-lo.
— M-mas, majestade… O menino veio de Gesur até aqui todo feliz, antecipando o momento do reencontro. O que é que eu digo pra ele?
— E eu lá sei? Você que inventou esse negócio, agora se vira.
Entristecido, Joabe deu a notícia a Absalão. O príncipe, como era de seu feitio, não teve qualquer reação: apenas foi morar em sua própria casa, pretendendo só pisar novamente no palácio quando coroado rei. Davi, conhecendo bem o filho que tinha, talvez não devesse mostrar-se tão intolerante: Absalão não era de reagir de imediato, mas gostava de cozinhar sua vingança em fogo lento.

6 comments

  1. Menino, vc é demais! Primeira vez que passo aqui, e não consigo ir embora. Jesus! Como é delicioso ler textos inteligentes, (re)ler fatos e história sob nova ótica. Marco, parabéns. Uma beijoca.

  2. Porra, fenomenal como sempre. To esperando pra ver essa Biblia sua publicada! Estouro de vendas, e inferno garantido pra voce…mas hein? Que fim levou a Tamar? Eles falam o que se sucedeu com ela?

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