Abner é assassinado

(II Samuel 3:22-39)
Estava tudo uma beleza: Davi, mais próximo do que nunca de ser soberano sobre um reino unificado, comemorava o acordo com Abner. O comandante do exército israelita, por sua vez, congratulava-se por ter arquitetado seu plano de forma tal que viria a ter no reino de Davi importância igual ou superior à que tivera durante os tempos de Saul. Tudo uma maravilha, mas isso só porque Joabe não estava por perto.
O comandante do exército de Judá fôra com seus homens fazer um ataque surpresa. Quando voltou a Hebrom, trazendo consigo um belo despojo, foi surpreendido pela novidade. Ficou emputecido: com que então Davi fizera um acordo com Abner sem consultá-lo? Era inconcebível! Mas ele não ia deixar tudo assim, ah, não ia. Foi falar com Davi:
— Você recebeu Abner aqui?
— Eita, que as notícias por aqui correm rápido… Recebi sim. E você não sabe do melhor: ele veio me propor um acordo de paz, Joabe! Eu vou ser rei da porra toda!
— Peraí. Abner veio aqui, falou com você, e depois foi embora numa boa?
— É, ué. Joabe, você não ouviu o que eu disse? Um acordo! Vou ser rei da porra toda!
— VAI SER REI DE PORRA NENHUMA! Será que você não conhece o Abner, Davi? Ele veio até aqui para espionar, para anotar seus movimentos, e assim ficar mais fácil para nos atacar.
— Que é isso, Joabe? Acho que cê tá ficando paranóico, parece até o finado Saul falando…
Mas Joabe já havia saído, mais furioso ainda, e já com um plano em mente. Para levá-lo a cabo, começou por enviar mensageiros a Abner, com uma desculpa esfarrapada qualquer para que ele retornasse. Os mensageiros alcançaram o general no poço de Sira e o convenceram a voltar. Quando Abner chegou a Hebrom, ficou surpreso ao ser recebido por Joabe logo no portão da cidade:
— Abner! Há quanto tempo, meu amigo!
— Er… Joabe? Você está bem?
— Bem? Ah, sim! Bem, bem, muito bem! E você, Abner, está bem?
— Estou sim. Recebi a mensagem, os moços disseram que você queria falar comigo. Aconteceu alguma coisa?
— Não, não! Está tudo bem, tudo ótimo, se melhorar estraga! Eu só queria tratar de uns assuntos aí com você, resolver direito os detalhes do… Peraí, tem muito nego curioso aqui. Vem comigo. — Joabe levou Abner até um canto do portão, atrás de uma pilastra. — Então. Queria resolver os detalhes da transição e tal. Fiquei sabendo do acordo entre você e Davi, fiquei muito feliz.
— É mesmo?
— Mas é claro! Sinto a felicidade explodindo meu coração. Você já sentiu o coração explodindo, Abner?
— Não que eu me lembre…
— ENTÃO TOME!!
Dizendo isso, Joabe enterrou um punhal entre as costelas do general, perfurando-lhe o coração. Abner olhou, atônito, para o rosto de seu assassino. Que estúpido tinha sido, como não percebera as reais intenções de Joabe? O momento de revelação durou pouco, porém, e em poucos segundos o general jazia morto às portas de Hebrom. Não tardou a começar o ajuntamento do povo, e em momento algum Joabe pensou em se esconder. Pelo contrário: queria que todos soubessem que ele mesmo matara Abner, vingando assim a morte de Asael, seu irmão. É claro que ele pensava mais na situação política do que em Asael ao enterrar a faca no coração de Abner, mas isso era só um detalhe.
Com o assassinato de Abner, a situação se complicava para o lado de Davi. Como Joabe era seu homem de confiança, era de se esperar que todo mundo concluísse o mesmo: que o rei de Judá, depois de fazer o acordo com Abner, utilizara-se de Joabe para tirá-lo de seu caminho. Sabendo que essa seria a conclusão óbvia de todos, Davi fez questão de negar em público qualquer participação na morte do general:
— Eu meu reino não temos nada com isso, e Javé o sabe. Que a culpa desse crime caia sobre a cabeça de Joabe, e que em sua família nunca faltem homens que sofram de gonorréia ou lepra, ou que só possam fazer trabalho de mulher, ou que sejam aleijados, ou que morram na guerra, ou que passem fome.
A maldição contra o assassino e sua família era eloqüente mas não resolvia nada: Joabe continuava sendo o segundo homem do reino, pois a Davi faltou coragem para tirá-lo de cena. Se lhe faltou essa atittude prática, porém, o mesmo não se pode dizer da tentativa de deixar claro que não tivera nada a ver com a morte de Abner: primeiro, o rei ordenou a Joabe e seus homens que rasgassem as roupas (sinal de respeito) e chorassem a morte do comandante. Em seguida ele fez o mesmo, seguiu o féretro e chorou à beira da sepultura de Abner, cavada em Hebrom, recitando versos de improviso. Depois todo o povo lamentou a morte do grande herói militar de Israel.
Como se não bastassem essas demonstrações públicas de condolências, o rei fez um juramento de não comer nada até a noite. Com isso, o resto de dúvidas que o povo de Judá ainda tinha se dissipou, e todos souberam que Davi não tinha mesmo ordenado o assassinato de Abner.
À noite alguns servos mais próximos de Davi ouviram seu desabafo:
— Abner era um homem e tanto, um grande líder de Israel. Uma pena ele ter morrido, uma pena mesmo. Eu, embora ungido rei, me sinto fraco. Joabe e Abisai, filhos de Zeruia, são fortes demais para mim. Que Javé os castigue como merecem.
Era de se espantar que Davi, homem sempre corajoso e arrojado, se sentisse tão diminuído frente à violência de Joabe. Se o povo soubesse disso, era capaz de bandear-se para o lado de Isbosete.
Não, pensando bem, acho que não. Se era espantoso que Davi desse uma demonstração de fraqueza, mais espantoso ainda seria ver Isbosete demonstrando qualquer coragem. O rei de Israel era patético, como já foi dito, e seu reino tinha os dias contados. Mas isso fica para o próximo capítulo.

3 comments

  1. Já que você está tendo dilemas literários, dou uma sugestão: você poderia ter feito o Joabe mais melífluo, e mais ameaçador (mas sutilmente). Como? Sei lá, cada qual cum seus pobrema.

Deixe uma resposta