Depois de uma crise de rinite um pouco mais chata, devido àquelas edições em papel jornal das obras de Agatha Christie, tomei um antialérgico e fiquei meio zureta. Continuei mesmo assim: faltam poucos para chegar ao 400º volume; sou obsessivo-compulsivo e quero fechar o trabalho de hoje com um número redondo. Pois bem, mas eis que cheguei ao 381º livro, o Decamerão, de Boccaccio. Comprei esse livro há anos num sebo e nunca o abri. Sabe aquelas leituras que a gente vai adiando, o volume vai ficando lá na prateleira mais alta e a gente esquece? Então. Hoje, porém, tive que abri-lo para fazer o cadastro. É uma edição da coleção Os Imortais da Literatura Universal, da Abril Cultural, uma série de livros de capa vermelha, vocês devem conhecer. Abri o livro, portanto, botei lá título, autor, editora, ano de publicação e… Epa, uma dedicatória!
O melhor de comprar livros em sebos é encontrar essas dedicatórias totalmente alheias a você. Um dia uma pessoa comprou o livro, escreveu uma dedicatória e o deu de presente para alguém que tinha algum significado. O destinatário não gostou do livro, ou o perdeu, ou lhe roubaram o volume, ou morreu e, passando de mão em mão, o livro foi parar num sebo, com sua dedicatória totalmente despida de sentido e calor. Essa aqui, porém, me deixou um tanto encucado. Transcrevo, com erros e tudo, a primeira parte, escrita a lápis:

Eu gostaria de dizer que a saudade e a ilusão de ser fiel é banal, que vida pertencendo a outra vida é fatal. As emoções do ser humano resume só em pavor e medo e dor. O medo de sair lá fora e gritar que é livre, que é gente, gente de verdade não maltrata outra gente.
Homem de verdade pode andar desolado e indefeso, vida boa é aquela que só os grandes vivem e conhecem.
Eu gostaria de dizer grandes verdades aos jovens que estão carentes de segurança e amor, preocupados com a dificuldade da grana, do futuro. Mas prefiro me calar para que o Pai não venha me sovar salvar. Mas vocês verão um dia que eu jamais menti e nem escondi este grande lamento e massacre maior do que a dor da Morte.
Sinha em 1/09/79 – sábado – 22:20min – SP

Na página seguinte, mais palavras apressadas (mal) escritas com a mesma caligrafia, também a lápis:

Olha, os dias tristes e sombrios me faz senti perdida como no meio de uma floresta.
O sonho bonito, torna solidão. A verdade vira fantasia, não consigo pensar direito. Tudo torna fosco e frio sem você; mas sempre chegam as doces recordações do seu jeito quieto , pacífico e fascinante e faceiro. Seu beijo doce e seu sorriso criança, amor sincero, bandido e medroso. Amor distante, presente só as recordações lembranças.
Mas mesmo assim eu tenho você… Se eu voltar sei que você vai gostar.
Mas…
Olha, lamento…
A volta pra mim virou tristeza, no caminho só sangue existe. A natureza da sua terra virou tristeza, minha solidão. O amor agora é como se fosse pecado. Impossível te amar agora aí, a não ser que tu venhas e me procure, estou aqui vivendo e sofrendo os meus dias de saudade, desalento e paixão recolhida!!!
Otavina em 1/09/79 – sábado – 22:30min – SP

Apenas dez minutos separam os dois textos confusos. “Eu, hein…”, pensei, e folheei o livro para poder cadastrar o número de páginas. Fui surpreendido por outro texto, esse a tinta e com outra caligrafia, escrito por uma pessoa um tanto menos culta que a Sinha/Otavina:

Otavina!
Se gosto de você tenho motivos. Se eu a encontrei um dia foi por acaso. Se fui ao seu encontro foi por querer.
E foi querer amar você que eu sofri mudei tanto!
E foi somente para agradar você que eu sofri.
Se antes eu já gostava de você, não sei…
E se agora eu sofro por amar demais
— não tenho paz…
Se eu sou assim, não tenho culpa
E se eu magoe você peço disculpas
Se eu amo tanto assim, não sei porquê
E não me pergunte mais “se eu gosto de você”!
de sua amiga que muito lhe estima,
Regina
2/06/80

Epa! Otavina e Regina??? Uau! E a Regina conclui na página seguinte, à guisa de P.S.:

— De onde vens?
— Do vale dos sonhos.
— O que trazes?
— Um coração ferido.
— Por que sofres?
— Por um amor perdido.
— Amaste?
— Sim, uma vez na vida.
— O que encontraste?
— Epocrezia. [AI!]
— Por que choras tanto?
— Porque ainda amo.
— Amas?
— Sim
— A quem?
— Você.

Que belezura, não? E agora eu não vou dormir pensando nessa história. Quem foram Otavina e Regina? Por que trocaram mensagens assim, através do Decamerão? Onde Regina estava que não podia mais ser amada por Otavina? Por que a resposta de Regina veio nove meses depois da mensagem de Otavina? Otavina leu essa resposta, ou foi apenas algo que Regina escreveu para guardar? Muitas perguntas.
A história que imaginei: deprimida e doente, Otavina escreve a lápis na folha de rosto do livro as palavras que lhe vêm à mente. Meses depois ela morre. Seus filhos lêem o que a mãe escreveu e não entendem nada. O pai morrera anos antes, a que amor secreto ela se referia? Visitando a tia Regina (ela não era tia de verdade, só era assim tratada por ser muito amiga da mãe) tempos depois, os filhos mostram-lhe o livro. Perguntam se ela sabe a quem as palavras da mãe se destinavam. Tentando dissimular a forte emoção, Tia Regina diz que não tem a mínima idéia, mas pede para ficar com o livro. Chora a noite toda abraçada ao volume, e no dia seguinte vai a um centro espírita. Lá, o espírito de Otavina pergunta se ainda gosta dela. Ela jura por tudo o que há de sagrado. À noite, em casa, escreve seu texto no final do livro.
Nah, não funciona.
Droga. Não vou dormir.