(I Samuel 27, 28:1-2)
Depois de poupar a vida de Saul pela primeira vez, Davi até chegou a acreditar que eram verdadeiras as boas intenções do rei. Quando da segunda, porém, ele percebeu que Sua Majestade era mesmo um maluco, e que não desistiria de persegui-lo, e que sua morte era mera questão de tempo. Bom, a morte de todo mundo (inclusive a sua, leitor) é mera questão de tempo, mas estamos falando de poucos dias.
Pensando nisso, Davi concluiu que sua única alternativa seria sair de Israel. Não para qualquer lugar, porém: Saul não hesitaria em declarar guerra a algum dos vizinhos mais fracos, se isso pudesse ajudá-lo a botar as mãos no filho de Jessé. Restava, portanto, a Filistia. A experiência de Davi por lá não fora das mais animadoras. Porém, era sua única opção, e ele resolveu arriscar. Dessa vez não iria sozinho, mas acompanhado de seus seiscentos bandoleiros. Contava com sua fama de persona non grata em Israel para impressionar Aquis, rei de Gate.
Foi até Gate, portanto, e apresentou-se ao rei. Aquis ainda se lembrava de Davi na última ocasião, babando e riscando as portas, expulso da cidade pelos guardas, então ficou impressionado com a altivez do israelita em sua presença.
— Ei. Você não era doido?
— Eu percebi que o senhor desconfiava de mim, então me fiz de maluco para escapar.
— Muito inteligente, muito inteligente… Entenda minha posição, Davi. Eu não podia confiar num homem tão popular em Israel, o homem que havia matado Golias, nosso maior guerreiro.
— Eu entendo, majestade.
— Mas hoje eu sei da sua situação, de como Saul o persegue e de como você e seus homens se esgueiram por todo o território de Israel. Seja bem vindo, portanto.
— Obrigado. Muito obrigado.
A verdade é que Aquis sabia que Davi era grande conhecedor do território israelita, depois de tanto tempo vagando pela terra. Como não era benquisto em Israel, o rei de Gate contava com sua lealdade, o que seria importantíssimo em caso de guerra. Sendo assim, Davi, suas duas esposas e seus soldados foram muito bem recebidos e ficaram morando em Gate. Não se sentiam à vontade na cidade, porém, então Davi foi falar com Aquis:
— Majestade, se o senhor vai mesmo com a minha cara, queria lhe fazer um pedido.
— Pode dizer, Davi.
— Queria saber se o senhor poderia me dar uma cidade para morar. Não vejo necessidade em ficar morando aqui na capital com meus soldados, atrapalhando a vida das pessoas e coisa e tal.
— Ué, vocês não estão atrapalhando em nada. Mas se você faz mesmo questão, pode ir morar em Ziclague.
Davi e seu bando mudaram-se, pois, para a cidadezinha de Ziclague, que a partir de então passou a pertencer aos reis de Judá (esse negócio de “reis de Judá” eu vou explicar mais para a frente, depois do reinado de Salomão. Tenham calma).
Davi ficou um ano e quatro meses morando na Filistia. Durante todo esse tempo, dedicou-se a atacar os povos que viviam naquela região (gesuritas, girzitas e amalequitas). Ele e seus homens matavam todas as pessoas e roubavam o gado e as roupas. Depois de cada ataque, Davi voltava a Gate para levar parte do espólio a Aquis, e o rei perguntava quem ele tinha atacado. Ele mentia, dizendo que tinha saqueado o sul de Judá, ou Jerameel, ou a terra dos queneus. Por isso precisava matar todo mundo em todo lugar que atacasse: se alguém escapasse, poderia correr até Gate e contar ao rei o que de fato acontecera. Sem testemunhas de seus crimes, agradava a Aquis ao dizer que atacava Israel dia após dia, e enriquecia. Depois de tanto tempo vivendo como malfeitor, Davi finalmente tornara-se um verdadeiro bandido. Aquis, imaginando o quanto seu hóspede era odiado em todo o Israel (sem razão), pensava que ele lhe seria leal por toda a vida, fosse por gratidão ou por ser a única opção. Enquanto isso, Davi se aproximava cada vez mais dos líderes da tribo de Judá, preparando terreno para seu retorno à terra natal.
Tudo ia muito bem, até o dia em que Aquis, não conseguindo pensar em nada melhor para fazer, decidiu que já era hora de voltar a cutucar os israelitas. Falou com os outros quatro reis da Filistia, os cinco reuniram suas tropas, e Aquis convocou Davi.
— Seguinte, rapaz: fique sabendo que você e seus homens vão lutar ao meu lado.
Com essa Davi não contava. Cultivava as melhores relações em Gate, mas sua maior preocupação era ser querido em Israel, ou ao menos em Judá. Mas é claro que não podia dizer isso: Aquis acreditava que ele atacava sistematicamente o sul de Judá, e aquela era a pior ocasião possível para desmentir tudo. Então estufou o peito e disse:
— Pois o senhor vai ver do que sou capaz, majestade! Vou acabar com aquela cambada de israelitas. Ah, se vou! Odeio aqueles caras! Odeio! ODEIO!
— Tá, Tá. Calma, Davi. Gostei de ver sua determinação, viu? A partir de hoje você é meu guarda pessoal.
Davi agradeceu com falso entusiasmo. Enfiara-se naquela situação e agora não sabia como sair dela.