“Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.”

(Caetano Veloso – Livros)

Eis os únicos objetos em todo o mundo pelos quais nutro algum sentimento que se aproxime do amor:

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Todos os livros são sagrados. Tá, talvez não todos. Deus me livre de beatificar algo escrito por Marcelo Mirisola ou Dan Brown. Enfim, todos os MEUS livros são sagrados. Trato-os com carinho, manuseio os danados com reverência, admiro o desenho formado pelos parágrafos, aprecio tanto o cheiro dos livros recém saídos da gráfica quanto o daqueles com mais de meio século de existência, com seu papel amarelado tornando-os ainda mais veneráveis.
Bom, isso tudo é para dizer que resolvi organizar minha biblioteca. Ou seja, pode ser que eu suma por uns tempos. Vivam suas vidas, amem seus familiares e amigos, conheçam pessoas legais. E, mais ainda, procurem ler bons livros e largar um pouco dos blogs. Nos vemos quando eu terminar este 12º Trabalho de Marcurércules.

(I Samuel 24)
Conduzindo um cerco tão pertinaz, era inevitável que Saul encontrasse Davi. Tal encontro, porém, não se deu como seria de se esperar. Já veremos por quê.
Depois de ter sido salvo pela invasão dos filisteus, Davi fugiu com seus homens para outra fortaleza natural, essa na região da fonte de Gedi. Quanto a Saul, escorraçou rapidamente os filisteus e tornou a se dedicar a seu passatempo predileto: brincar de gato e rato com Davi. Logo recebeu a notícia da localização de seu inimigo, e para lá partiu acompanhado de um exército de três mil homens, escolhidos dentre os melhores soldados de Israel. Quando estava perto de um lugar chamado Rocha das Cabras Selvagens, sentiu uma movimentação estranha no ventre. Chamou o general do exército:
— Abner, tudo em ordem?
— Sim, majestade!
— Bom, bom, muito bom. Olha, cuida de tudo aí enquanto eu vou ali naquela caverna do lado do curral de ovelhas para cobrir os pés(1).
— Está com frio nos pés, majestade?
— Não, Abner… Vou me aliviar, entende?
— Claro, claro, claro. Hum… Não, na verdade não.
— VOU CAGAR, QUE EU JÁ TÔ COM O CHARUTO NO BEIÇO!
— Ah. Sim. Claro. Boa… Aham… Cobertura de pés, majestade.
— Obrigado.
Saul se afastou, entrou na caverna, abaixou os calções, levantou a túnica e fez lá seu serviço. Limpou-se como pôde, recompôs-se, saiu da caverna e ia voltando para junto dos soldados quando ouviu uma voz às suas costas:
— MAJESTADE!
Voltou-se sobressaltado e viu um homem ruivo na entrada da caverna, ajoelhado em sinal de respeito. Seria ele? Estava com a pele escura, tinha crescido e era um homem forte. Mas a cabeleira ruiva e uma certa petulância na voz não deixavam muita margem a dúvidas. Ia perguntar, mas o homem continuou:
— Rei Saul, por que é que o senhor dá ouvidos às pessoas que dizem que eu quero prejudicá-lo? Veja que Deus o entregou a mim ali dentro da caverna. Alguns de meus homens queriam que eu o matasse, mas quem sou eu para levantar a mão contra aquele que foi ungido por Javé? Não acredita? Pois olhe para sua capa e verá que falta um pedaço. Aqui está! Eu cortei um pedaço da sua capa. Poderia tê-lo matado, mas não o fiz. Quer prova maior de que eu não pretendo fazer-lhe mal? Eu sei muito bem que o senhor quer me matar, e mesmo assim resisti quando tive a oportunidade de resolver tudo. Que Deus julgue quem de nós está errado, e me vingue por tudo o que o senhor me fez e faz, mas eu não levantarei um dedo contra o senhor. Ah, rei Saul! Quem sou eu para o senhor me perseguir dessa maneira? Não passo de um cachorro morto, uma pulga! Ah, faça-me o favor, assim não dá! Que Deus me livre do senhor!
Quanto mais Davi falava, mais boquiaberto Saul ficava. Quando terminou seu discurso, o queixo do rei quase batia no chão e a baba se acumulava nos cantos de seus lábios. Quando conseguiu falar, foi gaguejando:
— D-Davi? É você m-mesmo, meu filho? — e começou a chorar, o doido — Ah, Davi! Você está certo, claro, e eu estou errado! Você pagou com o bem todo o mal que eu tenho lhe feito. Quem é que, tendo a oportunidade de pegar seu inimigo, o deixa ir embora são e salvo? Só você mesmo, meu filho, só você mesmo! Que Javé o abençoe pelo que fez hoje. Agora eu sei que você será rei de Israel, e que terá um reinado próspero e justo. Mas, por favor, jure em nome de Deus que não acabará com meus descendentes, e assim o meu nome não será esquecido.
— Juro, majestade, claro que juro — é claro que Davi jurava, o filho do rei era seu melhor amigo.
— Ah, meu filho, muito obrigado! Você volta comigo?
— Não agora, majestade. Não leve a mal.
— Compreendo. Até logo, Davi.
— Até logo, majestade.
— Oras, me chame de Saul!
— Ainda não.
Os dois se despediram cordialmente, Saul voltou para Gibeá, e Davi para sua fortaleza. Tudo parecia estar bem. Mas só parecia: Saul era maluco, e é bom que não nos esqueçamos disso.

(1) As versões mais antigas da Tradução João Ferreira de Almeida traziam exatamente essa expressão: “… e entrou nela Saul, a cobrir seus pés”. Nas versões mais recentes, é dito que o rei foi à caverna para “aliviar o ventre”, enquanto a Tradução na Linguagem de Hoje, da SBB, diz que Saul foi mesmo “satisfazer suas necessidades”. Ou seja, foi cagar. Mas sempre gostei muito da expressão mais antiga, “a cobrir os pés”. Se imaginarmos (ARGH!) que, no ato, o rei deveria abaixar as ceroulas, que então ficariam enrodilhadas sobre os pés, o significado do eufemismo fica bem claro.