Faz tempo que eu não torturo vossas senhorias com minha voz fanha e meu violão arranhado, né? Pois então, hoje resolvi gravar uma canção e compartilhá-la com os leitores. Sofri muito para gravar a faixa de voz. Isso porque na terceira vez em que gravei a voz saiu límpida, afinada, uma coisa. Nem parecia minha voz. Só que meu microfone resolveu comportar-se como um filho-da-puta, e a faixa ficou repleta de chiados. Tentei repetir o mesmo desempenho, mas sem sucesso. Então sinto muito, vocês vão ouvir aquela voz que já conhecem mesmo. Apresento, portanto, de Chico Buarque de Hollanda:

MARCO AURÉLIO – DESALENTO
(botão direito, ‘salvar como’ / ~2,8Mb)

No mesmo dia da peregrinação pelos lugares sagrados de Santana, peguei o ônibus para voltar para casa e encontrei uma velha amiga.
— Renata!
— Marco Aurélio!
— Há quanto tempo!
— Pois é!
Às quatro exclamações que iniciam a conversa de dois velhos conhecidos desde que o mundo é mundo seguiu-se uma conversa bastante agradável sobre os velhos tempos. Velhos mesmo.
Minha história com Renata começou quando ambos tínhamos sete anos de idade, e da pior forma possível: cansada de minha tagarelice (eu sou um sujeito calado, mas uma vez que começo a falar não paro nunca mais), ela empurrou sua carteira, espremendo minha mão contra o encosto da cadeira em que estava sentado. Doeu muito, mas desde antes daquela época eu já procurava seguir a regra de nunca chorar na frente de uma mulher, haja o que houver. Então apenas engoli o choro, peguei minha tesourinha e picotei a linda toalha de plástico com que a caprichosa Renata cobria sua carteira. Ela abriu um berreiro surpreendentemente alto. Assustado, e sabendo que se não fizesse nada acabaria como único castigado, comecei a chorar mais alto que ela. A professora nem quis saber do que se tratava: botou os dois para fora da sala. Sozinhos no corredor era constrangedor demais continuar chorando, então ficamos calados e de cabeça baixa. A professora abriu a porta e nos deixou voltar, sem uma palavra. Sábia Dona Juraci.
Depois disso estudamos em salas e horários diferentes durante alguns anos. Voltamos a nos encontrar na quinta série, e foi aí que a porca, como se diz, torceu o rabo: Renata estava linda. Os cabelos lisos e pretos caíam até o meio das costas. A pele muito branca, em contraste com as sardas, destacavam a beleza de seu rosto. O porte altivo fazia a gente pensar num animal selvagem despreocupado. Desnecessário dizer que me apaixonei furiosamente. Olhando para ela agora, quase vinte anos depois, ainda conseguia ver um pouco da menina que ela fora. Os cabelos estavam mais claros, mas ainda compridos e lisos. As sardas continuavam salpicando o rosto.
— Tá vindo do trabalho?
— Nah, parei com esse negócio de trabalhar. Me aposentei.
— Como???
— Trabalhei mais de dez anos com esse negócio de informática e coisa e tal. Agora encasquetei que quero ser… Ah, você vai rir da minha cara.
— Fala, oras.
— Quero ser escritor.
— Que bom! Finalmente, né? Você sempre escreveu tão bem.
— É? Não me lembro disso não. Lembro que era bom em matemática, mas não de escrever.
— Ah, Marco Aurélio, faça-me o favor! Não era você que até lia dicionário?
— PUTA QUE PARIU! — todos os olhos se voltaram para mim nessa hora, então baixei um pouco o tom — Achei que ninguém mais lembrasse disso.
— Como é que a gente esquece um negócio desses?
— É verdade… Mas e você, anda fazendo o quê?
— Tô trabalhando numa escola.
— Merendeira?
— ¬¬
— FALA!
— Professora de Educação Física.
— Ah, que legal! Sua cara!
— É???
— Claro! Você era a aluna mais elegante nas aulas de Educação Física.
— Elegante?
— É. Os cabelos presos num rabo-de-cavalo, a camiseta branquíssima arrumadinha por dentro da calça Adidas, os tênis também muito brancos. E você corria, jogava vôlei e handebol, e nunca suava. No máximo reluzia um pouco.
— Nossa! Você lembra de muita coisa…
— Eu observei você por muito tempo naquela época.
— É, eu lembro.
Não foi muito tempo, na verdade. Dois anos, pouco mais ou menos do que isso. Mas eu me lembro que então um ano era um tempo longuíssimo. Hoje os anos se acumulam um sobre os outros e eu não consigo acompanhar sua velocidade cada vez maior.
— E tem visto alguém daquele pessoal? — outra frase-chave para tais encontros. “Aquele pessoal” nesse caso era um termo vago para definir um grupo que inclui eventualmente todo mundo que estudou na Escola Municipal de Primeiro Grau “Amadeu Amaral” (Entra burro, sai animal) de 1982 a 1989.
— Ah, faz tempo que não vejo ninguém. Encontrei a Moniquinha há uns tempos, lembra?
— Sim. Fui apaixonado por ela logo depois de… Bom, você sabe.
— É, é verdade. Então, tá casada.
— Coitado do indivíduo que desposou aquela maluca.
— Hehehehe, concordo. Não sei o que você viu nela.
— Eu tinha catorze anos, Renata. Pega leve.
— Tá, vai.
— E você?
— Eu o quê?
— Casou?
— Eu não. E você?
— Também não. Mas por motivos ideológicos.
— Como assim?
— Sou contra casamento, noivado, namoro, compromisso, essas coisas.
— E é a favor de quê?
— Putaria, ué.
— Bela ideologia… Ah, lembrei! Encontrei o Alexandre dia desses. Parece que ele e a Lilian montaram uma agência de turismo.
— Porra, saudade danada daqueles dois! Houve uma época em que eu os encontrava sempre no metrô. Nunca mais. Eles se mudaram daqui?
— Parece que sim.
Alexandre foi meu melhor amigo entre os onze e os catorze anos. Quando tínhamos treze, ele veio me fazer uma confidência:
— Cara, tô apaixonado pela Renata.
Eu tive que me segurar para não falar um “Eu também, caralho”. Em vez disso falei “Puxa, que coisa” e mudei de assunto. Dias depois ele veio falar comigo novamente. Estava um caco.
— Fui falar com ela, Marco.
— Com ela?
— A Renata, porra!
— Ah. Sim. Ela. E aí?
— Ela me deu o fora, cara. Pô.
Era visível que ele se continha para não chorar. Naquele momento em que vi meu amigo sofrendo tanto, Renata evaporou-se de minha mente como que por magia. Ela podia me fazer sofrer o quanto quisesse. Mas fazer o mesmo com o Alexandre era um pouco demais.
— Olha, a gente pegou na conversa e eu quase que passo do ponto.
— Nós já passamos do ponto faz tempo, Renata.
— Ah! Marco Aurélio, o Melancólico. Não muda, né?
— Que graça teria?
— Nenhuma.
Ela apertou a campainha do ônibus, e antes de ir para a porta de trás, encerrou a conversa conforme a regra:
— Precisamos nos ver mais.
— Claro.
Claro. E é claro que não trocamos números de telefone, endereços de e-mail nem nada. Eu sei onde ela mora, ela sabe onde eu moro. Mas não vamos nos visitar. Certas histórias devem permanecer no passado.