Anteontem ligaram aqui em casa. Uma voz suave, linda. Melissa, o nome da moça. Perguntou se eu tinha inglês fluente e me chamou para uma entrevista. Então marcamos para ontem às 16h30min.
Ontem desenterrei meu terno mais apresentável. Fazia tempo que eu não usava roupa de palhaço, então me assustei ao constatar que as calças estavam muito frouxas. Era de se esperar, eu pesava mais dez quilos quando comprei o terno. “Tudo bem”, pensei, “aperto a danada com o cinto”. Só que o meu único cinto decente está precisando de mais uns dois ou três furos. Pensei que ao menos sentiria um alívio ao me enforcar com a gravata. Qual o quê! Meu pescoço continua da mesma espessura, e eu quase sufocava dentro do colarinho. Eu nunca me lembro de comprar camisa nº4 com colarinho nº5, aí dá nisso: com a camisa e o colarinho na mesma numeração, eu corria o risco de interromper o fluxo sangüíneo para o cérebro e me dar mal na entrevista. Fora que, do jeito como o organismo masculino funciona (irrigando o cérebro OU o pênis, nunca os dois), era capaz de eu passar por certos embaraços na frente da moça. Não havia tempo para arrumar nada, porém, então saí de casa assim mesmo. De terno e gravata eu parecia até um homem respeitável.
Talvez por causa do terno, talvez pela empolgação de finalmente ser chamado para uma entrevista, consegui um feito inédito em meus 29 anos de vida: abordar uma garota no metrô. Eu sempre admirei (e invejei um pouco) a desenvoltura com que certos caras abriam um sorriso, diziam “Oi” e emendavam uma conversa animada com uma total desconhecida. E ontem chegou minha vez de agir como eles.
Uma morena lindíssima sentou-se ao meu lado. Puxou um livro de dentro da bolsa. Eu tenho mania de querer saber o que os outros estão lendo, nem que seja para dizer “Puta merda, só se lê livro espírita neste país”. Me retorci todo pra ver a capa do que a moça estava lendo. Talvez percebendo, ela facilitou minha vida botando o livro sobre o banco enquanto procurava algo na bolsa. Era Macunaíma de Mario de Andrade. “Com essa eu tenho assunto”, pensei, mas cadê coragem de falar com ela.
Enquanto isso, ela terminou de vasculhar a bolsa. Estava procurando o crachá, um daqueles que parecem uma pastilha retangular, sabem? No crachá, como era de se esperar, seu nome: Gabriela. Ela espetou a pastilha no peito e olhou para mim. Epa. Acho que ela queria mesmo que eu puxasse assunto. Então eu abri a boca para falar. Esperava que minha voz saísse esganiçada, ou abafada, mas fui surpreendido por um tom firme e casual:
— Primeira vez este ano que eu vejo alguém lendo no metrô algo que não seja um livro espírita. Parabéns.
— Puxa, obrigado. Eu também não suporto.
Ela não me rejeitou! Não virou a cara! Até sorriu, meu Deus! Ficou bem mais fácil:
— Mario de Andrade é muito bom, né?
— É sim. Este é o primeiro dele que estou lendo. E estou gostando muito.
— Leia Amar, Verbo Intransitivo. É excelente.
— É mesmo? Vou seguir seu conselho. É o próximo da minha lista.
— Não vai se arrepender.
— Claro que não. Epa, chegou minha estação. Tchau!
E foi isso. Tá, eu sei que se eu fosse um cara normal teria pelo menos conseguido o número do telefone da garota. Mas e daí? EU CONSEGUI ABORDAR UMA MULHER NO METRÔ! Os tímidos que me lêem devem saber o quanto foi difícil.
Cheguei ao endereço indicado, um prédio na Av. Moema. Subi até o 15º andar num elevador panorâmico que tremia e vibrava. Medo. Fui recebido pela Melissa, que estava encerrando a entrevista com um outro candidato. Um japonês de terno verde-claro amarrotado. Deixou o japonês fazendo um teste e me levou até uma outra sala. Era uma loura alta, muito bonita, e a voz era mais sexy ainda ao vivo.
— Marco, espera só um minutinho. Vou ali pegar água pra gente. Sabe como é, a gente começa a falar, dá sede.
— Sei como é. Tudo bem.
Ela saiu da sala e imediatamente eu ouvi uma voz me imitando:
— Sei como é. Tudo bem. Grandona. Uhu.
Olhei em volta. Que negócio era aquele? Achei que entrevistas assim só aconteciam nas esquetes do Monty Python, mas ali estava eu, vítima de um trote. Não conseguia identificar de onde viera a voz, porém. Até que ele falou com a voz normal, que eu imediatamente reconheci:
— Ô, mané. Aqui. Na janela.
Lá estava meu velho amigo urubu, pousado do lado de fora e me olhando através do vidro. Tinha o bico retorcido numa tentativa de sorriso sarcástico.
Como é que você me achou aqui???
— Ah, eu sempre dou um jeito.
Tá, tá. Agora vai embora. Estou no meio de uma entrevista.
— Eu sei, eu sei. E aquela história de mudar de área, hein? Não foi você que disse dia desses que nunca mais trabalharia com essa coisa de computadores e não sei mais o quê? Que estava cansado de ser refém de um estilo de vida?
Eu estou muito velho para mudar de área.
— Sei. Você fala isso desde os dezenove anos. Até quando?
VAI EMBORA!
— Arrá! Te peguei, né?
Pegou nada. É só um serviço temporário.
— Sua vida também é temporária, mané. Vê lá o que vai fazer com ela.
E saiu voando sem me deixar responder. Menos mal, porque Melissa voltou cinco segundos depois.
A entrevista em si não teve nada de mais. Falei sobre minha experiência profissional, sobre os dois anos na faculdade de Jornalismo, sobre a paixão pela escrita, sobre o Balde de Gelo. Metade da conversa foi em português, a outra metade em inglês. Depois ela me levou até outra sala para fazer um teste que consistia em duas traduções de texto. Coisa simples. Acho que tenho boas chances. E é só um trabalho temporário, não vou ficar refém desta vez.
Vou?