(I Samuel 21)
Davi sabia muito bem que não estava seguro em lugar nenhum dentro do território israelita. Precisava fugir para longe, mas antes passou em Nobe para falar com o sacerdote Aimeleque (ao que parece, o Tabernáculo fora movido de Siló para Nobe. A mudança não é mencionada em parte alguma). Vendo quem se aproximava, Aimeleque ficou com medo. Sabia que Davi era persona non grata no reino. Foi falar com ele todo trêmulo:
— O que você está fazendo aqui?
— Ô, Aimeleque. Queria falar com você.
— Queria falar o quê? O rei está te perseguindo, que eu sei.
— O rei? Me perseguindo? Que é isso, rapaz! Isso foi antes. Ele teve um daqueles surtos, sabe como é.
— Sei, sei…
— Mas agora já está tudo bem. Tanto que ele me enviou para cumprir uma missão. Estou viajando já há algum tempo. Saí às pressas e não tive tempo de fazer provisões. Por isso vim até aqui, para ver se você tem uns pães ou alguma outra comida para me dar. Eu e meus homens estamos com uma fome desgraçada.
Aimeleque olhou em volta e não viu mais ninguém.
— Que homens, Davi?
— Que homens? Ah! Não estão comigo agora. Nos separamos e combinamos um encontro noutro lugar mais adiante. É uma missão altamente secreta. Eu nem deveria estar falando sobre isso agora. Mas confio em você, Aimeleque.
— Puxa. Obrigado.
— Oras, mas não tem de quê! Você é um homem de confiança, eu sempre soube. Mas e aí, tem alguma comida para nós?
— Pois é, Davi. Eu só tenho os Pães da Propiciação.
— Ué, acho que Dona Propiciação não vai ligar de dar uns pãezinhos pra gente…
— Ai, ai… Estou falando dos pães sagrados, Davi.
— Ah, esses. Hum. E aí, tem jeito?
— Depende. Você e seus homens estão puros?
— Como assim?
— Er… Estiveram com mulheres ultimamente?
— Bom, ontem nós conversamos com umas meninas perto do poço que fica em…
— VOCÊS ANDARAM TREPANDO?
— Ah, isso. Não, não. Claro que não, Aimeleque! Se já ficamos em abstinência quando cumprimos missões corriqueiras, tanto mais numa missão assim importante. Estamos na seca.
— Ah, então está tudo certo. Já está mesmo na hora de trocar os pães, te dou os que estão diante do altar agora. Tudo bem?
— Peraí. Não são esses os pães que são colocados todo sábado numa mesa, com incenso queimando em cima?
— Exatamente.
— Pô, Aimeleque! Vai me dar pão velho de uma semana, e ainda impregnado de incenso? Não fode!
— Bom, é só o que eu tenho. Quer ou não quer?
— Bah. Tá bom, dá aí.
Aimeleque entrou na Tenda Sagrada e voltou trazendo os doze pães, cada um pesando dois quilos. Entregou tudo a Davi, que os arrumou num saco.
— Pronto, Davi. Agora, se você me dá licença…
— Peraí, Aimeleque, só mais uma coisa. Você não tem aí alguma espada ou lança para me emprestar?
— Ué. Como é que você sai para uma missão tão importante desarmado?
— Para você ver como o negócio é urgente! Saí correndo de casa e nem tive tempo de pegar nada.
— Hum. Bom, tem uma espada aí que eu acho que você conhece.
— Que eu conheço?
— Sim. A espada de Golias. Está enrolada num pano lá dentro, atrás da estola sacerdotal.
— Que maravilha! Espada melhor que aquela não existe! Pode me emprestar a danada?
— Leva, ué. Sou sacerdote, pra que vou querer espada? Ainda mais daquele tamanho…
Aimeleque voltou a entrar no Tabernáculo para pegar a espada. Entregou a arma a Davi, que agradeceu e saiu apressado. Tinha que sumir de Israel o mais rápido possível. Por enquanto, estava tranqüilo: Saul ainda não sabia de seu paradeiro, e não teria como saber. O que Davi não sabia é que um tal Doegue, edomita e chefe dos pastores de Saul, estava presente em frente ao Tabernáculo justamente na hora em que ele e Aimeleque conversavam. Muito azar.
Davi pegou a estrada saindo de Nobe e foi para Gate, uma das cinco grandes cidades da Filistia. Chegou e foi logo falar com Áquis, governador da cidade, para lhe pedir asilo político. Contava com seu anonimato, afinal estava bem longe tanto de Belém quanto do palácio real. Porém, bastou que os servos de Áquis o vissem para que advertissem o governador:
— Excelência, acho que esse é o Davi.
— Davi? Que Davi?
— Aquele rei israelita.
— Até onde eu sei, o rei de Israel é Saul.
— É, ainda é ele. Mas dizem que esse Davi aí está de olho no trono, e não demora muito a usurpá-lo. Era para ele aquela musiquinha que as mulheres israelitas cantavam depois da última guerra.
— Que música?
— Aquela! Umas cantavam: Lá no campo de batalha / Lutando em nome de Deus / Escorraçamos a gentalha: / Saul matou mil filisteus, e as outras respondiam: Isso é muito notável / Nosso rei é mui viril / Sua coragem é inabalável / Mas Davi matou dez mil.
— Ah, estou lembrado. Será que é ele mesmo?
— Tenho quase certeza, excelência.
Davi, sentado num canto enquanto esperava ser atendido, ouviu que um dos servos cantava a música que ele bem conhecia, e percebeu que era alvo de desconfianças. Estava em território inimigo, e os filisteus ainda se lembravam muito bem da morte de Golias, seu maior herói. O que fazer? Não tendo muito tempo para pensar, improvisou: começou a babar, balbuciar coisas sem sentido e rabiscar a madeira das portas. Áquis caiu direitinho em sua encenação:
— Mas que porra é essa? Esse cara é maluco, maluco! Por acaso estão faltando doidos na Filistia, para vocês me importarem esse de Israel? Não, já me bastam os birutas que tenho ao meu redor. Tirem esse louco daqui, por Dagom!
Os guardas pegaram Davi e o carregaram para fora da cidade, enquanto ele babava e esperneava. Já fora de Gate, soltou um suspiro de alívio. Tivera muita sorte. Poderia continuar contando com a sorte? Logo saberia.