(I Samuel 18:5-30)
Tudo parecia muito bem: Davi era um herói nacional, Saul firmava sua autoridade com a maior de todas as vitórias contra os filisteus, Jônatas tinha um bom amigo. Só que algo aparentemente inocente veio perturbar a paz no palácio: uma música nova que começou a se espalhar por Israel quando o exército voltou da batalha. As mulheres cantavam e dançavam na rua enquanto Saul desfilava em carro aberto, e ao prestar atenção na letra o rei ficou muito contrariado. Que música era essa? Bom, as mulheres se dividiam em dois grupos. Um cantava:
Lá no campo de batalha
Lutando em nome de Deus
Escorraçamos a gentalha:
Saul matou mil filisteus.

E o outro grupo respondia:
Isso é muito notável
Nosso rei é mui viril
Sua coragem é inabalável
Mas Davi matou dez mil.

Não era à toa a contrariedade de Saul. “Dez mil para ele, e só mil para mim? Que merda é essa? Agora só lhe falta o trono!”, pensava o rei, enciumado.
No dia seguinte ao desfile triunfal, o tal espírito maligno apossou-se de Saul de novo, e dessa vez com força total. Tomado pela paranóia, tinha certeza de que Davi pretendia usurpar-lhe o trono. Davi, sem saber do que ia na mente doentia do rei, correu para seus aposentos para tocar harpa e acalmar-lhe a fúria. Vendo ali a origem de sua perturbação, Saul não pensou duas vezes: pegou sua lança e arremessou-a contra o rapaz. Davi, porém, tinha reflexos rápidos, e conseguiu desviar-se da lança. Tomado pelo ódio (e pela loucura), Saul tentou mais uma vez, e outra vez Davi desviou-se. E, como não era besta nem nada, saiu correndo. Se Saul queria música para acalmar-se, que comprasse uma jukebox. Ele é que não ia arriscar-se a ser espetado na parede feito uma mariposa de coleção.
Davi não voltaria mesmo a tocar sua música no palácio, mas por iniciativa do rei: não suportando ver a cara daquele moço ruivo, Saul nomeou-o comandante de mil homens. Colocando-o numa posição intermediária — não tão alta a ponto de ficar longe da batalha nem tão baixa a ponto de ser apenas mais um entre tantos — Saul esperava que os filisteus logo o livrassem daquela pedra no sapato. Mas Davi tinha uma sorte danada. Tudo o que ele fazia dava certo, os israelitas o adoravam, e isso deixava o rei mais irritado ainda.
Saul passava as noites sem dormir, pensando em que posição de risco poderia botar Davi para que os filisteus o quisessem matar, uma vez que ele ter matado seu grande campeão a pedradas não parecia o suficiente. Torturava-se procurando uma resposta, até que um dia ela caiu-lhe na cabeça. Era tão óbvia que dava raiva: entre duas nações em guerra, as famílias dos respectivos reis eram alvos preferenciais para abalar o moral do inimigo. Davi não era de sua família, mas poderia ser. Com esse intuito em mente, no mesmo dia chamou o rapaz à sua presença.
— Davi, você pensa em se casar?
— Claro, majestade, claro. Mas acho que ainda sou muito novo para isso.
— Bobagem! O que você acha de Merabe?
— Quem?
— Minha filha mais velha, Davi.
— Ah, essa… Ué. Sei lá. Ela é legal.
— Eu quero que você se case com ela.
— C-como é?
— Não gagueje, oras! Veja que honra, você será genro do rei. Em troca, eu só lhe peço que continue sendo meu soldado fiel.
— Fico muito honrado, senhor, não me entenda mal. Mas quem sou eu, que origens tenho para ousar sequer pensar em ser genro do rei?
— Bah, modéstia besta. Você se casa com ela, estou mandando!
Sabendo que não valia a pena discutir, Davi agradeceu e foi cuidar de sua vida. Porém, como já estamos cansados de saber, o rei estava doido, e acabou dando sua filha em casamento a outro homem, um tal Adriel, morador da cidade de Meolá.
— Belo casamento, Saul. Está feliz?
— Claro, Abner, claro! É um bom rapaz, esse Adriel. E veja como minha filha está feliz.
— É verdade. Só Davi que não vai gostar disso.
— Davi? Ué, por que aquele puto não vai gostar?
— Ué. Você disse a ele que lhe daria Merabe em casamento.
— PUTA QUE PARIU, É MESMO! Ah, mas que cabeça, a minha! E agora, Abner?
— Hum… Ouvi dizer que sua outra filha tem interesse em Davi.
— Mical?
— Ela mesma. Quando ele passa ela fica olhando… Dizem que escreve poemas, acrônimos com o nome dele.
— Acrônimos, é? Que mau gosto… Bom, mas se ela gosta dele, o que estamos esperando? Tratemos logo de casar esses dois, antes que eu me esqueça e a ofereça a outro.
Saul comunicou a Davi o mal-entendido, e ofereceu-lhe a compensação:
— Você pode se casar com Mical, e ainda será meu genro.
— Hum. Mas eu mal conheço sua filha!
— Bobagem, bobagem! Terá tempo para conhecê-la depois que se casarem. Vamos logo cuidar disso.
Por Saul estava tudo acertado, mas Davi ainda relutava. Tornar-se genro do rei parecia-lhe um passo largo demais. Já esperando isso, Saul chamou seus empregados e ordenou-lhes que dissessem a Davi que o rei o apreciava muito e que seria uma boa idéia casar-se com a filha dele.
— Mas falem como se estivessem fazendo mexericos, não vão deixar escapar que eu mandei dizer.
Então nas semanas seguintes, sempre que conversava com algum empregado do palácio, Davi ouvia a mesma conversa:
— Puxa, seu Davi. O rei gosta muito do senhor, viu? Vive falando do senhor. “O Davi? Aquilo é um herói! Era de um genro assim que eu precisava!”.
— Que coisa… Para quem tentou me matar há tão pouco tempo, até que o rei está bonzinho.
— É a doença dele. O espírito ruim. O senhor sabe.
— Sim, eu sei, eu sei. Mas eu sou pobre, não valho nada. Ser genro do rei é uma honra grande demais para mim.
Todos os dias Saul pedia aos empregados notícias sobre a decisão de Davi, e a resposta era sempre a mesma: o rapaz continuava considerando-se indigno da filha do rei. “Hum. Então vou ter que fazê-lo acreditar que fez por merecer”, ele pensou, e logo mandou um recado a Davi:
— O rei não quer nenhum dote pela sua filha. A única coisa que pede é que você traga a ele cem prepúcios de filisteus.
Com isso, mais uma vez, Saul esperava que os filisteus acabassem com a raça de Davi. Os filisteus pareciam meio frouxos ultimamente, mas o rei duvidava que fossem ficar quietos se um maluco chegasse querendo cortar-lhes a pele do pau. Sabia o quanto Davi era orgulhoso, e usava esse orgulho como arma. Era orgulhoso, de fato: ao ouvir o recado, seus olhos brilharam. Um pouco de ação não lhe faria mal, cortar uns pintos filisteus seria divertido, e ainda seria genro do rei. Mical até que era jeitosinha, valia a pena.
O noivado foi anunciado por todo o Israel. Antes do dia marcado para o casamento, Davi reuniu seus homens e marchou em direção à Filistia. Mataram duzentos filisteus. Passaram a noite cortando os paus dos defuntos, e no dia seguinte Davi levou a Saul o dote pela sua filha: duzentos prepúcios, o dobro do que havia sido pedido. Saul ainda tentou mostrar-se desconfiado:
— Como é que eu vou saber que não são prepúcios israelitas mesmo?
— E desde quando israelita tem prepúcio, majestade?
— Er… Bem pensado. Mas quantos são? Eu pedi cem, lembra?
— Lembro sim. E trouxe duzentos.
— DUZENTOS??? Não acredito. Você poderia contá-los?
— Mas majestade…
— Ué, eu preciso saber.
Cheio de nojo, davi começou a contar os prepúcios.
— Um, dois, três, quatro… Olha, este é roxo! Dezenove, vinte, vinte e um… Que grandão, deve ser de algum parente do finado Golias! Cinqüenta e sete, cinqüenta e oito, cinqüenta e nove… Olha só este, que enrugadinho. Parece uma uva-passa. Cento e doze, cento e treze… Este aqui estica, olha só! Cento e sessenta e três, cento e sessenta e quatro, cento e sessenta e cinco, cento e sess… Não, isto aqui é uma uva-passa mesmo, como é que veio parar aqui? Cento e sessenta e seis, cento e sessenta e sete… Vixe, dá pra fazer um anel com este aqui… Cento e noventa e oito, cento e noventa e nove, duzentos. Pronto.
— Humpf. Bah. Tá bom, vai. Você agora é meu genro. Muito bem, seja bem-vindo à família.
Davi e Mical casaram-se. O povo amava Davi, aparentemente Deus amava Davi, e agora até sua filha amava Davi. O ciúme corroía a alma de Saul. Ele odiava aquele moço cada dia mais, e maldizia o dia em que o contratara. Alheio a isso, Davi continuava suas campanhas vitoriosas contra os filisteus, e via sua popularidade aumentar a cada dia.