(Rute 3)

A época da colheita terminou, e Rute voltou à vida de sempre. Não agüentando mais ver a nora ali sem fazer nada, só criando bunda, Noemi foi falar com ela:
— Rute, preciso arranjar um marido pra você. É por nada não, mas cê já tá meio passada, não temos tempo a perder. Cê lembra do Boaz, né? Aquele da cevada?
— Claro.
(Infelizmente)
— Pois muito bem. Se eu bem o conheço, esta noite ele vai debulhar cevada. E você vai tomar um banho (tá precisando, hein?), botar perfume e vestir sua melhor roupa. Depois, vá até o lugar onde ele está trabalhando, mas sem que ele a veja.
Noemi explicou todo o plano a Rute, e ela seguiu as instruções da sogra. Ao chegar à propriedade de Boaz, viu enquanto ele debulhava os grãos (da cevada, não dele, por favor!). Depois do trabalho, ele jantou pão de cevada com espigas secas e tomou cerveja. Estando já um tanto bêbado, deitou-se num monte de cevada. Gostava de cevada, o danado.
Ao ver que ele dormia, Rute foi se aproximando devagarinho, levantou a coberta de Boaz e deitou-se aos pés dele. No meio da noite ele acordou de repente (com uma puta dor de cabeça e uma sede infernal), e ficou espantado de ver uma mulher deitada ali com ele.
— Er… Quem é você?
— Sou Rute, sua empregada.
— Ah. Rute. Hum. O que aconteceu? Quero dizer… Bom. Você sabe.
— Você é nosso parente próximo, e tem que nos proteger.
— Hum. É. Tá. Então. Puxa, que coisa, não? Eu sabia que você era leal à sua sogra, mas não tinha nem idéia de que sua lealdade à família do seu sogro fosse grande a esse ponto…
— Hehehe.
(Trouxa)
— Mas é sério! Podia ter ido procurar um homem mais moço, mas veio aqui. Puxa… Olha, não tenha medo, viu? Todos aqui em Belém sabem que você é moça direita. Não se preocupe, vou fazer o que você quiser.
— Puxa, seu Boaz. Obrigada.
(Trouxa)
— Que é isso, que é isso… Só que tem um negócio: de fato, eu sou parente próximo da Noemi, mas tem um cara aqui na cidade que é parente mais próximo ainda. Então vamos fazer o seguinte: você fica aqui comigo o resto da noite, e amanhã eu falo com o tal sujeito. Se ele quiser ficar responsável por você, tudo bem. Caso contrário, eu juro por Javé que assumirei minha responsabilidade.
— Er… Obrigada, seu Boaz. Muito obrigada.
(Mas que grande filho da puta!)
Percebem? Rute deitou-se aos pés de Boaz, que acordou ainda meio bêbado, viu a mulher e deduziu que ele a levara para a cama. O plano de Noemi seria perfeito, não fosse o detalhe de Rute ser viúva. Se se tratasse de uma virgem, seria uma situação mais complicada. Como era viúva, Boaz ainda teve a presença de espírito para lembrar-se do outro parente de Elimeleque.
Bom, Rute voltou a dormir, mas acordou quando ainda estava escuro, para sair enquanto não havia ninguém acordado. Ela não podia correr o risco de ser vista, não agora que o casamento de Boaz não era tão garantido como Noemi calculara.
— Já vai, Rute? Peraí. Tire a sua capa e estenda-a aqui no chão.
Rute o fez e, adivinhem? Sim, sim: Boaz despejou uns vinte quilos de cevada sobre a capa, ajudou Rute a ajeitar o fardo sobre os ombros e despachou-a. Ela foi de lá até a casa de Noemi maldizendo todos os homens e todos os grãos do mundo. Ao chegar, foi recebida por Noemi:
— E aí, minha filha? Como foi?
— Hum. Mais ou menos. Ele disse que há um outro parente do seu finado marido, ainda mais próximo que ele.
— Ah, não! Não pode ser! Não p… Putz, é verdade. Tem aquele fulaninho lá. Ah, mas que merda! Como é que eu fui me esquecer disso?
— Pois é. Ele vai falar com o tal fulaninho. Por enquanto, mandou essa cevada pra gente.
— ARGH! Tira esse negócio da minha frente, que se eu comer mais cevada vou começar a produzir cerveja no estômago.
— É, também não agüento mais. Puxa vida, Dona Noemi. Que que a gente faz agora?
— Agora é ter paciência, Rute. Boaz não vai dormir enquanto não resolver esse assunto, pode ter certeza.
O golpe tramado por Noemi, que parecia tão garantido, acabou esbarrando num problema inesperado. Seja como for, Rute arrumou um marido. Mas quem será? Boaz ou o tal fulano?

“I reject anyone who’s crazy enough to actually go out with me,
and then I bitch about the fact that there aren’t any great women out there.”

(Chandler Bing)

É bem batida aquela frase de Groucho Marx: “Jamais ingressaria num clube que me aceitasse como sócio”. A graça da frase está em sua natureza paradoxal e também no alto teor autodepreciativo. Aplicada noutro contexto, porém, talvez a afirmação torne-se trágica. A relacionamentos, por exemplo.
Assim como Chandler Bing, eu passei os últimos anos rejeitando qualquer mulher louca o bastante para ficar comigo, e depois reclamava que não há mulheres legais no mundo. Acho que cheguei mesmo a escrever aqui no blog que só me apareciam mulheres malucas. É claro: eu achava doida qualquer mulher que manifestasse um certo interesse por mim. Enquanto isso, corria (ou rastejava) atrás de mulheres impossíveis, das quais eu via mais a personagem criado por mim e menos a pessoa de verdade.
Bom, já basta disso: depois de alguns momentos de autoanálise, concluí que tenho, sim, meus atrativos. Não físicos, isso é óbvio, mas tenho cá minhas graças. Portanto, uma mulher que se venha a se interessar por mim não será necessariamente maluca. Meio desregulada talvez, mas não maluca. Ou pelo menos não por isso. Pode ter batido a cabeça quando era criança, ou ter nascido em Cubatão no começo da década de 80, ou ter recebido uma alimentação insuficiente, ou… Ok, ok, estou divagando. O ponto é: pode se apaixonar por mim. Acho que aprendi a aceitar.

(Rute 2)

Onde é que estávamos? Ah, sim: começou a colheita de cevada em Israel, depois de anos de fome. Rute, sempre disposta a ajudar, foi falar com a sogra:
— Dona Noemi, eu estava aqui pensando num jeito de ajudar a senhora aqui, de botar comida dentro de casa, essas coisas.
— Ah, minha filha, que bom! Já escolheu o ponto, ou vai trabalhar em boate?
— Er… Na verdade eu estava pensando em ir catar espigas.
— Ah. C-claro, claro. Excelente idéia, Rute.
Então Rute foi para o campo e começou a andar atrás dos trabalhadores que faziam a colheita, apanhando as espigas que eles deixavam cair no chão (de acordo com a lei mosaica, o segador estava proibido de voltar atrás para pegar o que sobrava: o que caía no chão era destinado aos pobres). Rute foi indo atrás de um e de outro, e acabou entrando na propriedade de um certo Boaz. Esse Boaz, vejam só, era parente de Elimeleque, o finado esposo de Noemi. Pois bem, Rute estava naquela labuta quando o dono da plantação chegou e foi falar com os empregados:
— Que Javé esteja com vocês.
— Nah, com você.
Notando a presença tímida de Rute logo atrás de seus funcionários, Boaz perguntou ao chefe dos segadores:
— Ei. Quem é aquela moça ali?
— É a moabita que veio para cá com a Dona Noemi. Ela pediu para que eu a deixasse ir atrás da gente, catando as espigas que fossem caindo. Eu não achei nada de mais, autorizei. Ela está trabalhando desde cedo e só parou pra descansar um pouquinho na sombra.
— Hum… Rute, não é?
Sim Senhor…
— Escute, minha filha: não vá catar espigas em nenhuma outra plantação. Fique por aqui, e trabalhe perto das minhas servas, ficando com elas quando forem cortar espigas. Eu já dei ordem aos empregados para não mexerem com você, não se preocupe. E quando você sentir sede, pode beber a água que os empregados tirarem para beber.

[A partir de agora, Rute (assim como Noemi, mais tarde) passa a falar o velho e universal idioma chamado mulherês. Sabe aquele negócio de dizer uma coisa que significa o contrário, um filho do sarcasmo e sobrinho-neto da ironia? Pois então: nos próximos diálogos, transcreverei normalmente o que foi dito, e botarei entre parênteses e em itálico (a la Stephen King) o verdadeiro significado das palavras. Preparados?]

Quando Boaz terminou de falar, Rute ajoelhou-se, encostou o rosto no chão e disse:
— Por que foi que o senhor reparou em mim, e é tão bom assim para uma mera estrangeira?
(Sim, sim, quanta bondade! Podia me dar um emprego decente, ou então alguma comida, mas não! Me dá autorização para sair catando espigas caídas, como se isso já não estivesse previsto na lei de seu país. Cara-de-pau…)
Boaz não falava mulherês (nenhum homem fala), então apenas respondeu à pergunta:
— Eu ouvi falar do quanto você ajuda sua sogra, e que deixou sua família em Moabe para vir viver em Israel com ela, no meio de gente desconhecida. Que Javé a recompense, minha filha, que o Deus de Israel, que você veio procurar, te dê uma grande recompensa.
— Ah, mas assim já é demais! O senhor está sendo muito bom para mim. O senhor me dá ânimo, falando assim com tanta bondade. Eu bem sei que mereço menos do que uma de suas empregadas.
(Pelo jeito eu não mereço mesmo é nada. O negócio por aqui é na base do ‘Deus lhe pague’. Já vi tudo…)
Rute continuou trabalhando. Na hora do almoço, Boaz mandou chamá-la.
— Rute, venha aqui. Não se acanhe. Olha aí, pode comer.
Rute sentou-se entre os trabalhadores, e Boaz lhe deu cevada torrada para comer. Cevada torrada. CEVADA TORRADA! Sei não, tenho cá pra mim que cevada só presta se for assada com água e fermento, em forma de pão, ou então fermentada, como cerveja. Cevada torrada deve ter gosto de cabeça de alfinete. Mas Rute, sempre muito educada, empanturrou-se de grãos. E quando ela se levantou para voltar ao trabalho, Boaz ordenou aos empregados:
— Deixem a menina pegar espigas onde bem entender, e não mexam com ela. Aliás, deixem algumas espigas caírem de propósito, se puderem.
E assim Rute catou espigas até de tarde. Depois debulhou os grãos das espigas e os pesou: vinte e cinco quilos, nada mal para um dia de trabalho (fora a diversão que deve ser trabalhar o dia todo curvada sob o sol do Oriente Médio). Ela pegou sua cevada, assim como o que lhe sobrara do almoço (CEVADA TORRADA, MEU DEUS!), e levou tudo a Noemi. A sogra ficou espantada com a quantidade de grãos:
— Rute do céu! Onde é que você foi catar espigas hoje? Que Deus abençoe o homem que se interessou por você!
(Tomara que esse sovina pelo menos tenha o azar de engravidar você; só assim pra gente sair da merda)
— Um tal de Boaz, Dona Noemi, um homem muito bondoso.
(Filho da puta nojento…)
— Que Javé abençoe Boaz, que é bondoso tanto com os vivos como com os mortos. Rute, não sei se você sabe, mas Boaz é nosso parente próximo, e um dos responsáveis por nós.
(Filho da puta nojento…)
— Não sabia, Dona Noemi! Que maravilha! E sabe da maior? Ele disse que eu posso continuar trabalhando lá!
(Mas que bosta!)
— É bom que você vá mesmo, filha, porque se você for trabalhar na plantação de outro homem, é capaz que seja humilhada.
(Esse é parente, pelo menos tem obrigações)
Assim Rute continuou trabalhando nas plantações de Boaz até o fim da colheita da cevada e do trigo. Mas o fim da colheita não seria o fim da história de Rute e Boaz, como veremos.