Gideão

(Juízes 6)

Muito bem. Passaram-se quarenta anos desde a vitória de Débora e Baraque sobre Jabim e Sísera, e o povo mais uma vez começou a adorar outros deuses, a situação de sempre. E a praga da vez foram os midianitas, um povo nômade e pouco civilizado das imediações de Canaã. Durante sete anos os israelitas foram infernizados pelos midianitas, que eram ferozes e em grande número. E eles nem sequer se preocuparam em conquistar Israel: tão numerosos como gafanhotos, tinham também o mesmo comportamento desses insetos vorazes. Então, toda vez que os israelitas semeavam a terra, os midianitas se juntavam aos amalequitas e outros agrupamentos de beduínos e atacavam as plantações. Acampavam em território israelita e saíam fazendo arrastão, destruindo tudo. Os israelitas chegaram ao ponto de se esconderem em cavernas nas montanhas para fugirem dessa praga.
Imaginem a situação: um pastor israelita conduzia seu rebanho pelo pasto, quando ouvia o grito:

VILA OPERÁAAARIA
VIGÁRIO GERAL, Ê!
VILA OPERÁAAARIA
VIGÁRIO GERAL, Ê!

E lá vinham os midianitas com seus camelos, estuprando e matando as ovelhas, talvez fazendo o mesmo com o pastor. Um agricultor terminava de colher o trigo e lá vinha o brado tão temido em todo o território de Israel:

TIMÃAAAAAAAAO, Ê-Ô!
TIMÃAAAAAAAAO, Ê-Ô!
TIMÃAAAAAAAAO, Ê-Ô!
TIMÃAAAAAAAAO, Ê-Ô!

E os feixes de trigo viravam história. Cenas assim repetiam-se todo santo dia em Israel. Depois de sete anos de tal martírio, é claro que os israelitas se desesperaram e pediram ajuda a Javé (os israelitas de então eram como certos cristãos de hoje, que só pensam em Deus quando a água bate na bunda). Javé só tinha mesmo Israel para cuidar, então quando o povo o abandonava ficava sem ter muito o que fazer. Ficou muito feliz, portanto, quando recebeu alguma notícia do povo escolhido, e mandou logo um profeta com um recado:
— Eu tirei vocês do Egito, não tirei? Claro que tirei! Ajudei vocês na guerra aqui em Canaã, não ajudei? Claro que ajudei! E o que eu pedi em troca? Lealdade, mais nada! E nem disso vocês são capazes, seus mequetrefes. Estão aí adorando deuses cananeus, enquanto eu fico aqui fazendo tricô, jogando paciência, contando azulejos. Oras!
O povo ficou meio ressabiado com o recado trazido pelo profeta. Só que não sabiam que, logo depois disso, Javé enviou um anjo a Israel. O anjo veio e sentou-se debaixo de um carvalho perto do povoado de Ofra. Esse carvalho ficava na propriedade de um certo Joás. Gideão, filho de Joás, estava malhando trigo num tanque de pisar uvas, escondido dos midianitas, quando o anjo foi falar com ele:
— Rapaz!
— Que é?
— Você é corajoso, e Javé está a seu lado!
— Corajoso, eu??? Pffff… Não vê que eu estou trabalhando escondido, me cagando de medo dos midianitas, ô maluco? Cadê a coragem?
— Er… É, tá certo. Mas, enfim, Javé está a seu lado!
— Ah, está, é? Então me explica uma coisinha: se ele está mesmo do nosso lado, como é que os midianitas nos humilharam desse jeito? Dizem que Javé fazia coisas impressionantes antigamente, no Egito e no deserto. Cadê os milagres? Não vejo nada além de midianitas desdentados correndo pra lá e pra cá com seus gorros alvi-negros. Abre o olho, rapaz: Javé abandonou Israel, essa que é a verdade.
— Blablablá, sempre a mesma história. Que saco… Negócio seguinte: você vai livrar Israel das mãos do midianitas. É uma ordem de Javé.
— Uma ordem de J… HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA! Ô, rapaz! Mesmo que eu fosse doido de acreditar em você, como é que justo eu ia libertar o povo? Tá doido? Minha família é a mais pobre da tribo de Manassés, e eu sou o mais pé-rapado daqui de casa.
— E daí? Você vai conseguir porque Javé vai te dar forças. Você vai esmagar os midianitas como se fossem um só homem.
— Ah, é? Como? Com um mata-moscas?
— Pô, Gideão, num fode…
— Como é que cê sabe meu nome? É pegadinha essa porra, né?
— Mané pegadinha! Eu sou um anjo!
— É, e eu sou a Gina Lollobrigida…
— Acredite em mim, cáspita!
— Você quer que eu acredite só porque você está falando? Oras, faça-me o favor! Cadê suas asas? Aliás, nem precisa tanto: cadê seu distintivo de anjo?
— Não torra.
— Olha, tá na hora do almoço. Vou ali preparar uma comidinha pra gente. Enquanto isso, vai pensando num jeito de me convencer de toda essa presepada que cê tá falando. Anjo, só me faltava essa… Amanhã vem o Papai Noel aqui.
Gideão entrou em casa, cozinhou um cabrito e preparou pães sem fermento com dez quilos de farinha. Devia ser grande, o anjo. Depois de tudo pronto, botou a comida num cesto, o caldo numa panela, e levou tudo ao anjo do carvalho [Marco Aurélio resiste bravamente aos trocadilhos fáceis, obrigado].
— E aí, mano? Já pensou num jeito de me provar que você é anjo mesmo?
— Hum, vamos ver… Bota o pão e a carne nesta pedra e depois derrama o caldo em cima.
— Nem fodendo! A gente já tem pouca comida por causa dos midianitas, e você ainda quer que eu desperdice?
— Quer uma prova ou não?
— Que cê vai fazer? Milagre da multiplicação dos pães?
— Nah, isso é com o filho do chefe…
— Filho de quem???
— Er… Deixa pra lá. Faz aí o que eu falei.
— Tá. Vamos ver se você consegue provar alguma coisa…
Gideão arrumou a comida sobre a pedra, e despejou o caldo em cima. Então o anjo estendeu seu cajado e o encostou na carne e no pão. Imediatamente saiu fogo da pedra e incinerou toda a comida.
— Puta que pariu! PUTA QUE PARIU! VOCÊ É ANJO MESMO! CARACA! VOCÊ FEZ SAIR FOGO DA PED… Er… Anjo? Anjinho, u-huu! Cadê você??? Ai, cacete! Eu vi um anjo e tirei sarro da cara dele. Tô na roça, tô fodido!
— Relaxa, Gideão. Não vai te acontecer nada.
— Puta merda, agora estou ouvindo vozes.
— Ouvindo vozes é o cacete! Mais respeito!
— Quem é que tá falando???
— Eu.
— Quem disse “eu”?
— Eu disse “eu”.
— Quem disse “eu disse eu”?
— Eu disse “eu disse eu”?
— Quem dis…
— Tá, tá, calaboca. Sou eu. Javé.
— JAVÉ??? O DEUS???
— Não, o verdureiro. CLARO QUE É JAVÉ, O DEUS!
— Mas a que devo a honra dessa visita? Primeiro um anjo, depois Javé em pessoa. Que dia! Diz aê, Javé! Javé…? JAVÉ??? Puta merda, sumiu. Mania besta, a desse povo…
Mania besta ou não, Gideão achou por bem construir ali uma altar em honra de Javé, chamando-o “Javé é Paz”. Naquela mesma noite, Javé foi falar com Gideão:
— Opa.
— Javé?
— Eu mesmo.
— E aí?
— Beleza.
— Legal.
— Seguinte, Gideão: cê vai pegar aquele touro de sete anos do seu pai e ir com ele até onde está o altar de Baal pertencente à família. Você vai derrubar o altar e também o Poste-ídolo(*). Depois disso, vai erguer ali um altar de pedras, e queimar o touro e a madeira do poste destruído como sacrifício para mim.
— Er… Tem certeza, Javé? Eu não posso fazer que nem o pastor que chutou a Santa, e só dar uns tabefes no Baal?
— Claro que não!
— Mas meu pai vai ficar puto!
— Azar o dele. AZAR O DELE, TÁ ME OUVINDO??? O ÚNICO DEUS POR ESTAS BANDAS AQUI SOU EU! EU!!!
— Tá bom, tá bom, não precisa ficar nervoso. Vou fazer o que você mandou.
— É bom mesmo.
Gideão estava com muito medo. Baal e sua esposa Asherá eram deuses muito populares entre o povo. Então ele juntou dez de seus empregados para irem com ele, e saíram na calada da noite para destruir as imagens sem que houvesse testemunhas.
De madrugada, quando os homens da cidade acordaram e viram o altar destruído e o poste-ídolo queimado junto com um touro num altar de pedras que antes não estava ali, ficaram putos:
— Quem foi o filho-da-puta que fez isso???
Perguntaram aqui e ali e acabaram descobrindo que Gideão era o responsável pela profanação. Então foram falar com o pai dele:
— Joás, traga seu filho aqui.
— Pra quê?
— Oras, pra quê! Pra gente matar ele! O desgraçado destruiu nosso lugar de culto lá no alto do morro, que palhaçada é essa? Anda, anda, traz o moleque aqui!
— Peraí, peraí… Vocês vieram aqui para defender Baal? Não é possível! Quem vier aqui defender Baal será morto antes do sol nascer.
— Cê tá doido, velho??? O altar era seu, lembra?
— Tá, tá, eu sei. Mas agora passei pro lado de Javé. Ele anda falando com meu filho, enquanto Baal nunca falou com ninguém aqui. Ele não é Deus? Então que se defenda sozinho, não precisa de vocês.
— Pô… É verdade…
Os homens voltaram para suas casas, derrotados pelos argumentos de Joás. E Gideão ganhou naquele dia o apelido de Jerubaal, que significa “Baal que se vire, oras!”.
Poucos dias depois, os midianitas, os amalequitas e os beduínos todos se juntaram, atravessaram o Jordão e acamparam no vale de Jezreel, preparando-se para mais uma onda de saques. Gideão ficou sabendo e resolveu que era hora de assumir a liderança do povo: tocou uma corneta (a falta que fazem o rádio e a telefonia celular!) e seus parentes todos se juntaram a ele. Enviou também mensageiros às tribos de Manassés, Aser, Zebulom e Naftali, convocando os homens para a resistência. Com isso, juntou um exército respeitável. Então foi falar com Javé:
— Aê, Javé. Já juntei um bom número de homens para lutar contra os midianitas. Você disse que era para eu liderar esse povo, né? Mas eu queria fazer um teste antes: vou por um pouco de lã ali no lugar onde malhamos o trigo. Se de manhã a lã estiver molhada de orvalho, e o chão em volta seco, então terei certeza de que você está mesmo comigo, e que vai me ajudar a libertar Israel.
Javé não respondeu nada, mas Gideão mesmo assim fez o teste. Na manhã seguinte, o campo estava seco e a lã úmida.
— Hmmmmm… Será? Sei não, sei não… Eu queria uma contra-prova, Javé. Método científico, sabe como é. Então esta noite eu vou botar a lã no mesmo lugar. Se amanhã a lã estiver seca e o chão úmido de orvalho, aí sim terei certeza.
Javé continuou quieto. Estava doido para recuperar sua popularidade em Israel, por isso permitia a Gideão tais liberdades de ceticismo. Na manhã seguinte, a lã estava seca no meio de um campo todo molhado de sereno. Então Gideão pensou:
— É, fodeu… Agora vou ter que levar esse povo para a guerra contra os midianitas. Quero só ver no que vai dar…

(*)Postes-ídolos eram imagens de Asherá, esposa de Baal, em forma de totem. Eram habitualmente construídos ao lado dos altares do deus cananeu. Aliás, esse negócio de Javé mandar Gideão queimar o Poste-ídolo em seu altar, depois de queimar o altar de Baal, é significativo: é como se ele estivesse roubando a mulher de Baal depois de dar-lhe uns pescoções; um deus humilhando o outro.

12 comments

  1. Oi! Meu Deus se meu pastor sabe que eu ande lende esse blog (acho que ele nem sabe o que é…) ele me pega. ahahahah. Mas tudo bem, eu pensei que vc fosse crente, meio estranho, mas crente. Afinal acho que vc lê a Bíblia mmais do que eu. Vixe!!!Que vergonha pra mim. Mas sendo extremamente sincera, continuo achando vc criativo, inteligente. Leio seu blog todas as vezez que entro na Net. Esse último post gostei mt, apesar das reclamações do pessoal aí sobre o tamanho eu nem notei, quando vi já tinha terminado. Leitura cativante. Valeu. Só não posso pegar essa mania dos palavrões…Aí já é demais. Um ano novo cheio de alegria e boas surpresas pra vc. Ah! Continue lendo a Bíblia….um beijo cheio pra vc.

  2. Grande ???
    Ahhh bando de preguiçosos !!!
    Vão ler a Iliada de Homero pra vocês verem o que é grande !!!
    Marco como sempre muito bom, se você estiver sem inspiração para escrever e for postar 5 linhas, nem faça isso !
    Esses fariseus são todos uns sepulcros caiados mesmo !

  3. Ai caralho… Zen, eu não escrevo posts de cinco linhas, ou junto vários capítulos num post só por preguiça ou falta de inspiração. Já disse: dependo muito do material disponível. Se é bom como este capítulo, com Gideão de protagonista, um dos meus personagens bíblicos prediletos, o texto rende. Se é uma ladainha repetindo tudo o que já foi dito antes, passo por cima. Que inferno isso.

  4. Primeira vez q entro no seu site, parabéns!Vc deveria dar aulas de religião, catecismo, essas coisas. Ia ser muito mais divertido do q aquela chatice nas escolas de freira. Só não curti muito a analogia com os corinthianos, mas tudo bem… dessa vez passa. Outra coisa, não deixa reclamarem do tamanho não… qto maior melhor.

  5. Sou evangélica a muitos anos(muitos mesmo), a interpretação bíblica é, como vou dizer, terrivelmelmente fantastica de entender. Nunca me diverti tanto com uma história da Bíblia que costumam ser até dramática. Não sei se devia dizer isso, mas vc está de parabéns.
    Obs. é certeza que o e-mail não será publicado?

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