Algumas pessoas, dentre elas Ale Félix e Adailton Persegonha, andam insistindo comigo para que eu escreva um livro. Sem nenhum resquício de modéstia — qualidade que me falta e não faz falta — respondo que ainda não estou pronto, que ainda tenho que ler muito, que conhecer muita gente, para então me arriscar na sagrada tarefa de escrever um romance.
E eis que hoje fui atraído pela tentação de escrever meu livro logo de uma vez. Não que tenha adquirido alguma segurança instantânea, longe disso. Mas estava pensando: sou amigo de Clarah Averbuck, Daniela Abade e Paulo Polzonoff. Dá vontade de escrever só pela possibilidade de, com esse elo comum, sermos no futuro considerados todos como parte de um mesmo grupo. Ia ser muito engraçado ver esses três entrando para a história como compadres literários…

(Josué 6)

Na chón!

Na chón!


Com os depauperados israelitas já recuperados da circuncisão, Javé não via motivos para adiar mais a invasão de Jericó. Deu instruções detalhadas a Josué, e foi assim que na manhã seguinte os homens que estavam de guarda nas muralhas da imponente cidade presenciaram uma cena insólita: soldados israelitas marchando seguidos por sete homens com roupas engraçadas — sacerdotes, pela solenidade que exibiam — tocando cornetas de chifre de carneiro. Atrás desses sacerdotes vinham outros carregando um baú sobre os ombros — que os guardas não tinham como saber que era a Arca da Aliança — e atrás destes mais soldados. De longe, do acampamento, o povo de Israel assistia à cena. O que mais impressionava era o silêncio: nem os soldados que marchavam, nem os sacerdotes que carregavam a arca, nem o povo no acampamento emitiam som algum. Os homens nas guaritas, estupefatos e sem saber direito o que estava acontecendo, guardavam silêncio sem se dar conta disso, só murmurando de quando em vez: “Que porra é essa?”. Apenas as cornetas soavam enquanto os sacerdotes e soldados rodeavam as muralhas. Depois de completarem seu percurso, todos voltaram para o acampamento.
A história se espalhou pela cidade, cujos habitantes já viviam em estado de sítio antes mesmo de qualquer ameaça israelita: desde o dia em que o povo atravessara o Jordão os portões da cidade viviam muito bem trancados, e ninguém tinha autorização para entrar ou sair. Naquela manhã, quando os guardas viram os soldados se aproximarem, pensaram tratar-se enfim da invasão. Depois que eles apenas rodearam as muralhas e voltaram para o acampamento, porém, um certo alívio foi sentido: talvez os israelitas tivessem desistido da invasão ao verem o tamanho da cidade e a espessura de seus muros.
No entanto, a tensão voltou a reinar no dia seguinte, quando os mesmos soldados e sacerdotes voltaram carregando o baú e tocando cornetas enquanto davam mais uma volta ao redor da muralha. A notícia se espalhara, e dessa vez vários habitantes de Jericó assistiam à cena de cima do muro. Houve vaias, gritos de guerra, ovos e tomates atirados, faixas de “Galvão, filma eu!”. Os israelitas, impassíveis, apenas completaram sua volta e retornaram ao acampamento.
A mesma cena se repetiu por mais quatro dias. A tensão então era insuportável, com aqueles malucos vindo todo dia à mesma hora para tocarem cornetas e circundarem a cidade. Seis dias consecutivos da mesma palhaçada; e o povo de Jericó com os nervos estraçalhados.
No sétimo dia foi a mesma coisa: vieram os soldados, atrás deles os corneteiros e a Arca, e depois mais soldados. Só que não voltaram para o acampamento quando terminaram de dar a volta na cidade. Em vez disso, deram outra volta.
E outra.
E mais outra.
Sete voltas no total. Depois disso, os sacerdotes tocaram as cornetas produzindo um som prolongado, e os israelitas vieram correndo do acampamento, enquanto gritavam em uníssono:
VAMO INVADI!
VAMO INVADI!
VAMO INVADI!

Imediatamente as muralhas da cidade caíram.

Ah, não fode!
Porra, o que cês querem que eu faça??? É assim que tá lá na Bíblia, então tenho que contar assim: com o grito do povo, as muralhas de Jericó — tão espessas que havia pessoas morando nelas, lembrem-se — ruíram. Os israelitas então invadiram a cidade, tratando de cumprir com alegria as instruções de Javé: matar todos os habitantes, inclusive velhos e crianças, e todos os animais.
Peraí — há de perguntar algum leitor mais atento — e a Raabe?
Sim, sim, é verdade. Raabe, se vocês não se lembram (é CLARO que não se lembram…) era aquela puta que morava na muralha da cidade, e que protegeu os espiões israelitas. Antes de partirem, eles garantiram que ela e sua família seriam poupados no dia da destruição de Jericó. Pois vejam só: toda a muralha caiu, com exceção do pedaço em que Raabe morava. Os dois espiões — que já a conheciam muito bem — foram encarregados de irem até lá e resgatarem a puta, os filhos da puta, os pais da puta, enfim, a putaiada toda. Ela foi incorporada ao povo e tratada como israelita desde então. Se bem que era MULHER e PROSTITUTA. Numa sociedade machista e moralista como aquela, seria mais negócio ser cachorro.
Resgatada Raabe com sua família, os soldados israelitas puderam concluir seu trabalho: atearam fogo à cidade, salvando apenas os objetos de ouro, prata, bronze e ferro, que foram levados para o tesouro do Tabernáculo. Depois de concluída a destruição, Josué amaldiçoou a cidade e qualquer um que tentasse reconstruí-la. Sei não, mas acho que a maldição não foi levada muito a sério. Podem procurar num mapa de Israel: ali do lado do Jordão está a moderna cidade de Jericó. O que importa para nós agora, porém, é que com a destruição de Jericó, Josué finalmente começou a ser respeitado e temido. Os israelitas celebravam o sucesso de sua empreitada sob o comando do novo líder, enquanto os cananeus tremiam apavorados ao ouvirem a história do general que, juntamente com seu povo, derrubara as muralhas de uma cidade na base do grito.