Bão Balalão
Senhor capitão
Tirai este peso
Do meu coração
Não é de tristeza
Não é de aflição
É só de esperança
Senhor capitão
A leve esperança
Aérea esperança…
Aérea, pois não!
Peso mais pesado
Não existe não
Ai, livrai-me dele
Senhor capitão.
(Manuel Bandeira)

Sabe aquela sensação de ver um livro muito bom chegando ao final? Aquela tristezinha de saber que em breve vai ter que se despedir dos personagens que você tem acompanhado com tanta atenção, da cabana à beira do lago, do barco, do beco sujo? Então. É assim que eu me sinto, agora que percebo que o sentimento que alimentei por você todo esse tempo começa a evanescer-se. Foi uma excelente leitura — uma espécie de Magnolia dos sentimentos — mas estou nas últimas páginas. Tento reduzir o ritmo, ler uma página hoje, tomar um café, contar os azulejos, olhar para o pé, cortar as unhas, ficar jogando minha bolinha de borracha na parede, ler outra página amanhã, ir ao banco, experimentar um chapéu, cantar no karaokê… Mas eu sei muito bem que esta leitura está terminando. Muito breve fecharei o livro, soltarei um suspiro, olharei para o vazio por um tempo pensando no que acabo de ler, e então botarei o livro de volta na estante.
Seria diferente se você tivesse vindo para ler comigo. Então leríamos até o final com alegria, faríamos comentários engraçadinhos ou melancólicos, como é de nossa natureza. Ao final, começaríamos a adicionar ao livro novas frases, novos parágrafos, páginas, capítulos. Tenho aqui em algum lugar um calhamaço que surgiu assim, escrito por mim e por outra garota. E é muito engraçado, bem escrito, denso. Eu só não sei onde está porque minha biblioteca é uma bagunça. Seria bom escrever um novo com você, mas esse tipo de pensamento não é muito saudável. O futuro do pretérito a Deus pertenceria, você sabe.
Então guardo o livro. Ele ficará lá na estante, emitindo seu brilho de uma cor muito linda — a sua cor predileta, aquela — e será difícil não olhar para ele por algum tempo. Talvez um dia você entre aqui na minha biblioteca do seu jeito leve e tímido, e com a voz vacilante me peça o livro emprestado. Se acontecer, será a melhor releitura de minha vida. Se não acontecer, paciência: há muitos livros nessas estantes de madeira escura que vão até o teto. E eu sou mais voraz que os cupins.

Quando aprendi a ler, aos cinco anos de idade, dois livros me fascinaram logo de cara: um tinha capa preta com o título, “Bíblia Sagrada”, em letras douradas. Na primeira página, uma dedicatória:


Marco Aurélio,

Leia e será abençoado.
Lindauro

Levei a sério a dedicatória do meu pai e comecei a ler. Gostava da leitura, me empolgava com as histórias, achava algumas cenas hilariantes e não entendia como é que tanta gente dizia que era um livro complicado. De jeito nenhum! Tinha um monte de palavras novas, é verdade, mas para isso eu tinha o meu outro livro. Um livro que me chamou a atenção logo que eu consegui ler seu título na lombada enorme: Dicionário Aurélio. Eu não sabia quem era o tal de Dicionário, mas logo simpatizei com ele por também chamar-se Aurélio. Meu pai me explicou para que servia e como funcionava, e eu quase endoidei: então era só abrir aquele livrão e pronto, eu saberia o significado de qualquer palavra? Magnífico!, como diria o Compadre Washington.
Eu lia a Bíblia com gosto, e quando me deparava com monstrengos como aleivosia, opróbrio ou concupiscência, corria para o livro que tinha meu nome e descobria o sentido de todas elas. Era um mundo novo de personagens maravilhosos, histórias fantásticas e palavras belíssimas.
E vejam só no que deu…

Passando em frente a uma banca hoje, reparei que todos os jornais falavam numa certa Liana e num tal Felipe. Eu — que não leio jornais nem vejo TV e tenho orgulho de minha alienação — não sabia do que se tratava, então tratei de me informar. Ao que parece é a notícia da vez: um casal foi acampar e acabou assassinado. Bom, acho que todos já estão cansados de saber da história. Eu queria mesmo era comentar a capa do Jornal da Tarde de hoje:

Eu pergunto: como é que posso dar adeus a pessoas que nem conhecia? Eu sei que o caso é triste, e tento imaginar a dor e a revolta que as famílias e os amigos de ambos devem estar sentindo agora. É triste, sim. Mas não me afeta. A morte do rato em Green Mile, do Stephen King, me entristeceu mais do que esse caso. Por que eu seria hipócrita então?
Sou cruel? Não! Cruel é o JT, que usa a dor das famílias afetadas para vender jornal. Cruéis são as pessoas que compram o jornal loucas para acompanharem Passo a passo o roteiro da tragédia. Minha indiferença nesse caso é mais solidária às famílias que sofrem do que ficar lamentando a morte de Liana e Felipe, os quais jamais conheci. Lamentando, mas querendo saber detalhes, é claro. Qual dos dois morreu primeiro? Como eles foram mortos? Ela foi violentada? Mas de que forma? E quantas vezes?
Eu tenho nojo.
E agora as vozes que bradam a favor da pena de morte se levantam mais uma vez. Estranho que essa gente só se manifeste quando a imprensa faz esse jogo emocional com algum caso. Ninguém fala em pena de morte quando um favelado é morto. Policiais têm sido assassinados sistematicamente em São Paulo e nada de alguém se lembrar da pena capital. Engraçado, né? Querem pena de morte? Organizem-se, elejam deputados e senadores que defendam as mesmas idéias. Oras.
O problema é que nego quer ser mais cruel que o Javé do Velho Testamento: enquanto a Lei Mosaica pode ser resumida em “Olho por olho, dente por dente”, tem muita gente por aí que quer algo do tipo “Pisão no pé por olho” ou “Chamar de ‘seu bobo!’ por dente”. Gente que fala que o certo seria o exército bombardear favelas. Que seria bom a polícia sempre dar um jeito de fazer a mesma faxina que fez no Carandiru em 1992. Pessoas assim são a favor da barbárie, não da justiça.

(Josué 8)
Eu não entendo essa gente que diz que é difícil agradar a Deus. Consideremos o caso de Acã, por exemplo, que vimos no capítulo anterior. Só foi preciso que o povo levasse Acã para fora do acampamento e o apedrejasse, queimasse sua família e seus animais juntamente com suas posses e depois soterrasse tudo sob um montão de pedras e pronto: Javé estava feliz de novo. Isso é que é um Deus bom e cheio de misericórdia, eu não me canso de dizer…
Já de coração leve, Javé desceu do céu assoviando para falar com Josué:
— E aí, meu chapa? Pronto pra juntar uma galera da pesada e sair detonando e aprontando todas pelas ruas de Ai?
— Er… Hein?
— Bah, tá vendo? A gente é duro e todo mundo acha ruim, a gente é bonachão e informal feito uma chamada de filme da Sessão da Tarde e ninguém entende. É uma merda. Negócio seguinte: cês vão invadir Ai, e dessa vez vão ganhar a batalha. E com um detalhezinho que você vai gostar: ao contrário do que aconteceu em Jericó, dessa vez vocês vão poder ficar com o espólio da cidade.
— Hum.
— Ué, não ficou feliz???
— Porra, Javé. Agora cê resolve liberar o espólio? Tivesse feito o mesmo em Jericó, oras! Não teríamos passado aquele vexame em Ai e nem precisaríamos executar Acã e sua família.
— Bah, você é muito sensível a essas coisas… Deixa isso pra lá, ok. Vamos botar uma PEDRA sobre esse assunto… PESCOU? PESCOU? PEDRA!
— …
— Humpf. Olha, estão aqui os planos para a conquista de Ai.
— Ok.
Conquista, claro está, era eufemismo. Termos mais exatos seriam massacre, genocídio, limpeza étnica: as instruções incluiam, como da outra vez, a exigência de que toda a população fosse exterminada.
Na madrugada seguinte, os guardas de Ai foram surpreendidos pela presença de um acampamento israelita ao norte do portão principal da cidade. O rei ficou indignado ao saber da notícia:
— Mas como é que pode! Nós já não demos uma surra nesses calhordas? Como é que eles ousam vir aqui de novo, ainda mais com um exército tão pequeno? São suicidas ou o quê?
— E tem outra coisa! O líder deles, o tal de Josué, está no comando naquele acampamento.
— O quê??? Os caras mandam um destacamentozinho sem-vergonha desse, e ainda liderado pelo maior general que eles têm? São burros mesmo. Vamos lá, vamos botar esses imbecis para correr.
Então o rei saiu da cidade com todos os seus soldados. Conforme avançavam na direção do acampamento israelita, iam cantando o mundialmente famoso hino de Ai:
AI!
AI AI AI!
AI AI AI AI AI AI AI!
EM CIMA, EMBAIXO, PUXA E VAI!

Quando ouviram o hino e viram o exército imenso que se aproximavam, Josué e seus comandados levantaram acampamento e saíram correndo como da primeira vez. Os soldados de Ai riam e zombavam da covardia dos israelitas:
— Volta aqui, circuncidado, que eu vou acabar de cortar seu pau!
— Não foge não, ô do gorrinho!
— Você aí de trancinha, me espera!
— ESPERAÍ, FILHO DA PUTA, QUE EU VOU FAZER VOCÊ COMER MANÁ PELO… Er…
Majestade?
— VOLTA AQUI, QUE EU VOU FAZER COM A TUA BUNDA O QUE MOISÉS FEZ COM O MAR VERM… Que foi?
— Olha ali atrás…
O rei olhou e não acreditou no que via. Notando o olhar embasbacado de seu líder, os soldados foram parando para olhar para trás. E lá da cidade que eles haviam deixado fazia pouco tempo viam subir a fumaça. Ai estava sendo destruída. Enquanto todos ainda estavam congelados pela incompreensão do que acontecia, Josué ordenou a seus homens que dessem meia volta e começassem o ataque.
Mas como foi que isso aconteceu?, alguém pode perguntar. Oras, é simples: a estratégia que Javé passara a Josué era manjada porém eficiente. Sabem aquele golpe do Didi, de ficar balançando o pezinho para distrair o oponente, e então dar-lhe uma traulitada na cachola? Pois foi mais ou menos isso que Josué fez: acampou com um exército pequeno bem à vista dos guardas de Ai, mas antes havia enviado mais de trinta mil homens para se esconderem a oeste da cidade. Quando o rei saiu com seus homens para atacarem o pé do Didi Mocó que era o destacamento-isca de Josué, os outros aproveitaram para darem um catiripapo na caçoleta de Ai, entrando na cidade para matar todos os seus habitantes, saquear o que houvesse de bom e incendiar o resto.
O rei percebeu o quanto fôra imprudente ao sair da sua cidade com todo seu exército. Ainda pensou em voltar mas era tarde: Josué e seus soldados já caíam sobre eles, e os outros israelitas, tendo concluído boa parte da destruição da cidade, vieram dar apoio. O exército de Ai foi totalmente cercado e todos foram mortos, com exceção do rei, que foi tomado como prisioneiro. Tendo terminado de matar os soldados, os israelitas voltaram para a cidade e concluíram o massacre. Saldo: doze mil civis mortos. A cidade foi saqueada e reduzida a ruínas. Por fim, Josué enforcou o rei de Ai numa árvore e ali o deixou até o pôr-do-sol, quando ordenou que o cadáver fosse jogado na frente do portão principal da cidade e sepultado sob um monte de pedras.
Depois de duas conquistas importantes como foram as de Jericó e Ai, era hora de Israel cumprir as instruções Moisés deixara para quando o povo atravesasse o Jordão. Josué, então, construiu no alto do monte Ebal um altar de pedras brutas e sobre ele o povo ofereceu sacrifícios. Depois disso, metade do povo se posicionou em frente ao monte Ebal, enquanto outra metade ficava em frente ao monte Gerizim, para ouvirem a leitura da Lei feita por Josué. Pronto, o povo de Israel estava oficialmente em Canaã. Agora era só conquistar o resto do território.