No post sobre Matrix Revolutions eu mencionei Dostoiévski de passagem. A Fernanda, que acabara de descorir o JMC, gostou da menção a seu (e meu) grande ídolo. Tratei logo de visitar o blog da garota, e descobri com alegria seu bom gosto literário. Vi lá que ela falava no escritor russo Nicolai Gogol com muita intimidade, então fiquei curioso para ler os contos que ela citava, O nariz e O capote: comprei ambos num sebo por 6 reais cada um (coleção de bolso da L&PM, sabem?), e tratei logo de abrir O Nariz (…).
Quase desanimei ao ler a primeira nota de rodapé, que dizia que um certo Paul Evdokimov, em seu livro (ou ensaio, sei lá) Gogol e Dostoievski ou a Descida ao Inferno, de 1961, fez uma interpretação apocalíptica de O Nariz, segundo a qual o tal nariz seria o Anticristo (???). “Vai ser dureza”, pensei. Mas que nada!
A história, que se passa na São Petersburgo do século XIX, pode ser resumida assim: o barbeiro Ivan Yakovlévitch acorda, vai tomar o café da manhã, corta o pão e encontra um nariz dentro dele. Sim, sim: um nariz no pão. Sua esposa, Prascovi Ossipovna, lança imprecações contra o marido descuidado, bêbado, que cortou a um dos clientes a napa. Ele, sem entender nada (como aquilo viera parar em seu pão???), reconhece o nariz: pertence a M. Kovaliov, assessor do colegiado, que ele barbeou na quarta e no domingo.
Em sua casa, Kovaliov acorda também e é surpreendido pela ausência do nariz. A cara está lisa (“lisa e chata, como uma panqueca ao sair da frigideira”). Fica desesperado, é claro, e trata de ir ao chefe de polícia. No caminho, porém, é detido por um fato inacreditável: seu nariz assumiu forma humana e desembarca de uma carruagem e entra numa casa. Veste uniforme de conselheiro de Estado e tem o rosto oculto pelo colarinho alto e pelo chapéu de dois bicos; mesmo assim é reconhecido pelo seu dono. Kovaliov o segue até o Bazar da Perspectiva Nevski e o diálogo que ali travam é das coisas mais absurdas e engraçadas que já li na vida.
Imaginem eu lendo isso e esperando a hora em que seria revelada a natureza de Anticristo do Nariz. Qual o quê! O próprio autor, em um dos finais do conto (Gogol tinha a mania de ir mudando suas obras com o tempo), diz:
Eu confesso aos senhores, não consigo entender como pude escrever estas coisas! Mesmo para mim isso ultrapassa a compreensão que os autores possam ter de assuntos semelhantes. A que isso leva? Que finalidade tem? O que pretende demonstrar esta narrativa? Eu não compreendo, eu absolutamente não compreendo. Convenhamos, a fantasia não conhece leis, e além do mais efetivamente ocorrem no mundo muitos acontecimentos perfeitamente inexplicáveis. Mas aqui… Que faz aí o nariz de Kovaliov?… E o que faz aí o próprio Kovaliov?… Não, eu não compreendo, não compreendo absolutamente. É para mim de tal forma inexplicável que eu… Não, impossível compreender!”
Na versão final, esse trecho ficou assim:
Mas, o que há de mais estranho, de mais extraordinário, é que um autor possa escolher semelhante assunto… Eu confesso que isto é, deste modo, absolutamente inconcebíbel, é como se… não, não, desisto de compreender. Primeiramente, isso não tem absolutamente nenhuma utilidade para a pátria. Em segundo lugar… mas igualmente em segundo lugar, não tem nenhuma utilidade. Em resumo, não tenho a menor idéia do que se trata…
Vejam vocês: um simples conto picaresco e non-sense cai nas mãos impiedosas e ímpias de meia dúzia de escolásticos, que destrincham a obra feito um frango, deformando-a até que se encaixe em seus padrões cinzentos e sem graça. É triste de se ver, e mais triste ainda notar que há quem compre tais idéias. Não fosse essa raça, teríamos muito mais gente se divertindo com Gogol, Dostoievski, Tolstoi, e isso pra ficar nos únicos três russos que conheço (e amo, não sei se vocês perceberam).