Bem que eu estava me achando estranho hoje. Uma vontade incontrolável de fazer o bem às pessoas, de dizer coisas legais a todo mundo. Dei flores para uma amiga triste, liguei para um amigo doente, desejei boa sorte em sua nova empreitada a um casal de amigos, mandei um email carinhoso para uma garota que me odeia. E agora que cheguei em casa entendi: Fabrícia morreu hoje à tarde.
Fabrícia era minha prima. Morava na cidadezinha de Coaraci, sul da Bahia, onde minha mãe nasceu. Tinha uma doença degenerativa do sistema nervoso central. Há anos não falava nem andava. Mas ainda sorria e tinha um olhar puro e expressivo. Olhar que se tornou triste e opaco depois da morte da minha tia, há algumas semanas. E hoje à tarde essa tristeza, tão grande e que ela não tinha como expressar, levou Fafá embora.
Hoje eu queria muito acreditar em deus.

– Arre égua!
Disse o secretário, na solenidade de inauguração.
– Porra !
Disse o Deputado, em plena sessão extraordinária.
– Será o caralho !?!
Disse o Ministro quando recebeu só 20%
– Puta que o pariu !
Disse o presidente da Associação Beneficente.
– Não tem cu que agüente !
Disse Dona Laura, irmã da Maria,
prima do Adail, genro do Oliveira,
pai do Atanagildo, vizinho da Raimunda
que eu não conheço, nunca vi mais gorda…

Falcão. Sempre ele. Se eu não ouvisse essa música agora, era capaz de matar um.

“Na boa… Não é porque é meu chefe que estou aqui pra defendê-lo… Tanto que nem vou defendê-lo pq ele por si só é capaz e muito bem. Mas fico indignado como as pessoas que valorizam tanto o que ele escreve, não consigam discernir uma metáfora. Chamem o Ibama por ele ter matado o grilo. Aliás, deveriam criticar também quando ele deu um cigarro pro urubú. Pobre ave, não? O mais interessante é quando falam: “Nossa, pq não deu a liberdade ao grilo?”. Aí é que está a referência dele ao assunto que quer tratar. Acha que o grilo iria ignorar a presença dele no banheiro e continuaria a querer pular a janela? Ele tava era lambendo a merda no cocô do papel higiênico… Agora critiquem que havia merda no papel bem naquele cesto onde estava o grilo. Pobre do animal. Ah! Tinha uma formiga também aqui na minha mesa. Desculpem, mas não resisti e a matei. Tinha nada pra fazer mesmo. Bah!”
Cada dia mais eu me convenço de que valeu muito a pena ter contratado esse moleque.

Leia isso:

“No último quinto da noite alguém começou a contar a história da mulher que tocou num piano o acorde mais belo do mundo e, por algum motivo não investigado, sua casa foi atingida por uma nuvem de gafanhotos que destruiu a pintura, as cortinas e comeu o rosto do bebê que dormia num berço do segundo andar. Enquanto ríamos, o mesmo alguém sacou do bolso um pianinho Casio e tocou o acorde, o qual ouvimos, repentinamente estáticos.”

Leu? Releia, releia! Sabe o que é isso? Isso é Daniel Lima, meu caro! Um dos maiores escritores deste país, e quero ver quem é que vai querer discutir sobre isso comigo.

Estava eu banhando este corpo moreno, cheiroso e gostoso ontem à noite, quando notei um grilo verde de uns 10 centímetros de comprimento se equilibrando sobre a borda do cesto de lixo.
— Um GRELO verde de 10 centímetros???
Eu disse GRILO
— Ah…
Então. Ele se equilibrava como podia sobre a borda do cesto, olhava para cima como se calculando a distância até a janela, dava uma reboladinha de ensaio. Por fim saltava, desajeitado, e caía atrás ou dentro do cesto. Aí voltava, pacientemente, se equilibrava na borda e começava tudo de novo: “Hmmmm… Dessa vez vai. Um… Dois… E… ZZZZZZZZZUMP! PLAFT! Merda. Lá vamos nós”.
Assistindo àquela cena (e a água correndo, e as contas de luz e água aumentando), lembrei do Pinóquio, ou mais exatamente do Grilo Falante, que desempenhava o papel de consciência do boneco de pau, pau de carvalho. E, claro, comecei a conversar com o bicho.
— E aê? Cê é um grilo falante também?
(reboladinha)
— Sabe o que é? Ando sentindo falta de uma consciência.
(ZZZZZZZZZZZUMP!)
— Não acreditar em deus é uma merda. Você acaba perdendo a sintonia com aquela voz interior, saca?
(PLAFT! caiu dentro do cesto)
— Aquele lance de anjinho e diabinho nos ombros, cochichando coisas em nossas orelhas, sabe? Então.
(reboladinha, dessa vez com maior determinação)
— Mas ter um grilo como consciência ia ser bem mais legal. Eu ia andar com você no ombro. Você é um belo inseto.
(hesitada)
— Ia render papo com a mulherada.
(ZZZZZZZZZUMP!)
— Ô. Fala comigo.
(PLAFT!)
— Fala comigo, bicho estúpido! Até um urubu é mais inteligente que você!
(reboladinha)
— Ah, filho da puta!
Tomado de repentina ira, sapequei três certeiras chineladas naquela barata verde puladeira e continuei meu banho. Quando estava saindo, no entanto, notei um movimento com o olho do rabo, digo, o rabo do olho. O bicho, todo estropiado no chão, mexia uma de suas possantes pernas traseiras, arrastando-se na direção da parede. Tinha os olhos alucinados voltados para a janela. Era inútil, ele já era um inseto condenado, mas ainda assim se agarrava ao fio de vida que lhe restava, ainda se permitindo o direito de sonhar com a liberdade representada pela janela aberta.
Não suportanto aquela cena terrível, desferi-lhe mais duas chineladas, abreviando enfim sua vida.
Não foi à toa que o criador de Pinóquio colocou um grilo como consciência do boneco. Dormi muito mal essa noite.