Então, farisaiada. Tão pensando que a vida é só festa? Que nada! O papo lá de deus com Moisés e Arão continua. Na retomada da conversa, deus dá um toque para o sumo-sacerdote:
— Arão, tenho um negócio muito importante pra te falar. Seguinte: Cê não pode entrar a hora que quiser no Santíssimo Lugar, onde está a Arca. Só depois de ter matado um bezerro e um carneiro para oferecer como sacrifício, e de ter tomado um banho e vestido as roupas sacerdotais. Guarde bem essa lei. Isso é para evitar que, por ignorância, você acabe morrendo como seus filhos.
— Não seria mais fácil você deixar de ser truculento e ignorante, matando todo mundo que faz alguma coisa fora das suas regras?
— Ah, Arão, assim não dá! Ia virar uma esculhambação: Num dia cê esquece o bezerro, entra lá e eu faço vista grossa. No outro cê chega atrasado, não tem tempo de tomar banho, entra e eu deixo quieto. Se eu for deixando, dia desses cê me aparece pelado no Santíssimo Lugar, balançando seu Pequeníssimo Lugar na minha frente. Não posso deixar isto aqui virar zona. Porque eu sou é deus, tá sabendo? DEUS!!!
— Tá bom, vai. Toca o barco.
— Hum, muito bem. Vamos falar sobre o Dia do Perdão, também chamado Yom Kippur, também chamado O Dia Em Que O Bom Retiro E Higienópolis Param. Quando chegar o Dia do Perdão, o povo entregará a Arão dois bodes para a oferta para tirar pecados e um carneiro para holocausto. Antes de fazer qualquer coisa, Arão pegará o bezerro que será oferecido em sacrifício pelos seus próprios pecados e pelos de sua família. Depois trará os dois bodes até a entrada do Tabernáculo. Então ele vai tirar a sorte usando duas pedras, uma escrita “Javé” e outra escrita “Azazel”. O bode que ficar com a minha pedra será oferecido em sacrifício aqui. O outro será oferecido vivo e depois enviado ao deserto, para Azazel.
— A-Azazel? Q-quem é e-esse?
— Er… Um cara aí.
— Um cara aí?
— É. Um… Um… Um deus
— UM DEUS???
— É. Fala baixo, porra.
— M-mas cê n-não fa-falou que o ú-único deus e-era vo-você?
— Falei, falei. Esse Azazel aí não é bem um deus… É um… Um demônio do deserto, pronto. Falei pra ele que tava com esse projeto de escolher um povo e inventar uma religião, e ele disse que comprava uma cota de publicidade. Me pagou uma puta grana, então eu encaixei ele nesse negócio do Yom Kippur, que é um negócio de destaque, e prometi o tal bode.
— Hum… A-anoto i-isso?
— NÃO!!! Deixa sem explicação nenhuma, melhor assim. E esquece esse assunto, vamos em frente. Feito o sorteio dos bodes, Arão trará o bezerro dele e o matará ali no altar. Depois disso, pegará dois punhados de incenso consagrado e levará para o Lugar Santíssimo, atrás da cortina. Aí ele vai botar o incenso no fogo do propiciatório, para que o lugar fique perfumadinho e Arão não morra, como os filhos dele.
— VAMOS PARAR DE FALAR DESSE ASSUNTO, PORRA???
— Tá, tá, desculpa… Depois de acender o incenso, ele aspergirá o sangue do bezerro sobre o propiciatório. Então voltará ao altar, degolará o bode que teve a sorte de ser dedicado a mim, e fará com o sangue dele o mesmo que fez com o do bezerro, aspergindo o propiciatório. Durante todo esse tempo, ninguém deverá entrar no Tabernáculo. Esse negócio aí de aspergir o propiciatório com sangue é para purificá-lo, e Arão fará o mesmo com a tenda e o altar. Terminada a purificação do Santíssimo Lugar, do Tabernáculo e do Altar, Arão trará o bode vivo. Colocará as mãos sobre a cabeça do bicho e confessará todos os pecados do povo de Israel. Desse jeito, os pecados todos cairão sobre o bode. Precisamos de um nome para esse bode, um nome de impacto… Bode Expiatório, tá aí. Depois de passar a pecadaiada toda pro bode expiatório, Arão designará um homem para levar o bicho para soltar no deserto, que é pra Azazel não me encher o saco. Cês tão anotando tudo aí?
— E-estamos, Ja-Javé. M-mas é m-meio ca-cansativo i-isso aí.
— Peraí, tô terminando. Depois de tudo isso, Arão e o homem que tiver levado o bode expiatório ao deserto deverão tomar um banho.
— JUNTOS???
— Só se você quiser, santa. É cada uma… Bom, o bode e o bezerro que foram sacrificados serão queimados fora do acampamento. O homem que ficar encarregado disso também tomará um banho. Se você quiser, Arão, pode ser junto com você e o outro cara. Respeito isso aí.
— Tá, Javé, não abusa.
— Hehe. Então é isso aí o Dia do Perdão.
— S-só f-faltou u-uma c-coisa, Ja-Javé. Di-dizer que d-dia se-será ce-celebrado o Yom K-Kippur.
— Bem lembrado, Moisés. Vai ser no décimo dia do sétimo mês desse calendário maluco de vocês. Esse dia será como um sábado, vocês não trabalharão. É um dia totalmente dedicado ao perdão dos pecados. Anotado?
— Anotado.
— Toquemos o bonde.

Hoje a Bárbara faz 25 anos. VINTE E CINCO ANOS! Está velha, tadinha. Mas nem parece: desde quando a conheci ela tem a mesma cara, e pelas fotos acho que ela não mudou nada desde que nasceu. Ainda pedem identidade para ela nos bares. Sei não, acho que há um retrato envelhecendo dentro de algum armário na casa dela. Namoramos por pouco mais de três anos. Enquanto eu engordava, enfeiava e encarecava, ela continuava exatamente a mesma. E continua até hoje. Constrangida por isso, às vezes muda o cabelo, e é só.
Há quem pense que ela se resume a isso. Quem a conhece sabe que não; quem não a conhece pode tentar entender lendo sua auto-análise:

Eu sou pequenininha como a minha timidez. Eu sou delicada como minha visão estética. Eu tenho contradições entre corpo e rosto – magra mas com grandes e saudáveis bochechas rosadas, e tenho um rosto mais branco que meu corpo. Minhas olheiras (de família e de nascença) contam a vida desegrada que eu levo. Minhas sardas são a manifestação física da minha ironia e da minha eventual esperteza. Mas o centro de tudo é o meu nariz. Meu nariz abatatado lembra que eu não sou a bonequinha de porcelana que algumas pessoas acreditam que eu sou. Meu nariz é a prova da minha resistência e da minha miscigenação. Eu lembro de uma história, acho que dos irmãos Grimm, em que descobrem que uma moça é mesmo uma princesa quando ela acorda toda dolorida e cheia de marcas após dormir em uma cama cheia de colchões, lençóis, etc, mas com uma ervilha embaixo de tudo. Eu não tenho essas frescuras, eu não sou nenhuma princesa. Eu sou o meu nariz.

E é verdade. Pois quem a vê com aquela cara de menina nem desconfia da mulher que ela é. Inteligente e culta ao extremo, engraçada, bom caráter, corajosa pra caralho. Resiste a tudo, até a um namoro de tanto tempo com um caso perdido feito eu. Uma mulher admirável, enfim.
Bárbara, feliz aniversário para você. E para o seu nariz também.
(Pronto, mulé. Não teve cartão mas teve post, então não me torre. E não esquece de pegar seu urso lá na Funhouse…)

Enquanto não sai o capítulo novo do Levítico, mando um negócio velho aí pra vocês se distraírem. Escrevi esse, sei lá, conto em julho de 2000. Era pra um concurso de contos de suspense. O que eu ganhei? Nada, é claro. Nem lembrava mais dele, mas o Zezinho (cadê o blog, moleque?) o mencionou hoje e resolvi procurá-lo. Milagrosamente (sim, porque a maior parte dos meus textos não sobrevive) ele estava aqui na máquina. Leiam aí:
LOUCURA
O começo de tudo foi banal. Eu estava passando pela Praça Ramos de Azevedo no centro de São Paulo. O lugar é um antro de loucos, por isso quase nem me virei para olhar quando ouvi o grito. Um berro estranho, que começou grave e foi subindo de tom até ferir os ouvidos. Só me virei para olhar por causa da reação das pessoas ao redor, espantadíssimas.
Primeiro pensei que o autor do grito havia sumido. Mas o berro amedrontador se repetiu, saindo da garganta menos provável: a de um respeitável senhor de uns 45 anos, terno bem cortado, camisa branca, gravata de seda. Seu rosto estava transtornado e ele olhava para além de tudo, para algum terror imenso que só ele via com seus olhos esbugalhados de pupilas dilatadas.
Não tive tempo para me espantar: Uma gargalhada horrível, metálica, se sobrepôs ao grito. Era uma senhora idosa que olhava as vitrines com muito interesse na hora em que o homem gritara. Estava agora sentada no chão, rindo, puxando os cabelos e arranhando o rosto.
— Estão loucos. — Disse alguém do meu lado.
Eu ia responder, mas notei que o rapaz que tinha falado dirigia-se a um cesto de lixo. Uma garota linda, de uns 20 anos, morena, óculos de aros redondos, veio correndo de braços abertos em minha direção com uma expressão de êxtase no rosto.
— Eu não acredito! Chico Buarque de Hollanda!
Aquilo para mim foi a gota d’água: Corri para dentro do Mappin e desci a escada lateral em direção ao subsolo, onde fica o supermercado. O caos reinava. Uma mulher passava pelas prateleiras pegando os produtos, lendo cuidadosamente os rótulos e colocando-os em seu carrinho imaginário. Seus pés estavam ensangüentados, cortados pelos vários cacos de garrafas e frascos derrubados por ela, que parecia não sentir e continuava fazendo suas compras. Uma das moças do caixa dançava nua sobre o balcão. Um elevador estava parado e o ascensorista bradava “Subsolo! Fogo e enxofre! Choro e ranger de dentes!” sem parar. Um rapaz de sobretudo preto e boina estava deitado sobre os queijos com o sorriso mais idiota do mundo na cara.
Meu horror aumentava. Uma TV presa a um suporte no teto transmitia um telejornal que noticiava a epidemia de insanidade. Eu não conseguia ouvir nada, mas as imagens bastavam. Num jogo de futebol (em Madri, conforme a legenda) o árbitro correra para o meio do campo e se suicidara com um tiro na boca. Os jogadores dançavam sobre o cadáver, no que logo foram imitados pelos torcedores, causando assim mais mortes. A imagem voltou para o apresentador que olhou para a câmera, levantou-se de sua cadeira e começou a pular e jogar seus papéis para cima. Se eu queria notícias, podia esquecer.
— Meu Deus, meu Deus, meu Deus. — Comecei a falar sem parar. Cheguei a pensar se não estaria enlouquecendo também. E acho que cheguei muito perto.
Fechei os olhos e fiz um esforço enorme para contar até dez. Só eu sei o quanto precisei de coragem para isso. Nesses breves dez segundos senti mais medo do que em toda a minha vida. Medo de morrer nas mãos daqueles doidos. Medo de desmaiar. Mas, sobretudo, o medo de ficar louco também, de sair balbuciando imbecilidades.
Nada disso aconteceu, felizmente. A pausa serviu para que eu voltasse a raciocinar. Precisava sair dali, mas a rua não era uma alternativa atraente. Mesmo com toda a balbúrdia do subsolo eu ainda podia ouvir os sons que vinham de fora: gente berrando, rindo, chorando, tudo muito alto. Muitas das ruas do centro da cidade são na verdade calçadões onde só pedestres podem circular. Mas eu ouvia buzinas, e senti um arrepio imaginando os motoristas loucos vindo do Viaduto do Chá e entrando a toda velocidade na Praça Ramos, atropelando as pessoas e rindo, rindo.
Também não queria ir para os andares superiores: se o subsolo estava assim, eu é que não queria ver o estado dos pisos mais movimentados. Olhei em volta, ainda mantendo a calma. Meu olhar caiu sobre uma placa vermelha. “Proibida a entrada de pessoas estranhas”. Fui na direção da porta com muito cuidado; um movimento brusco chamaria a atenção, e sabe-se lá o que poderia acontecer. Abri a porta e saí num corredor curto com outra porta no final. Fechei a porta atrás de mim e abri a outra. Uma escada mergulhava para o andar de baixo. Fiquei parado, com um medo irracional de descer. Ou quase irracional.
Ouvi a história sobre o segundo subsolo pela primeira vez há uns dois anos, quando eu trabalhava em uma empresa de inventários. Os funcionários que faziam o inventário do Mappin viviam falando sobre o segundo subsolo. O fato conhecido é que o prédio pertence à Santa Casa de Misericórdia. O que pouca gente sabe, diziam eles, é que abaixo do subsolo ficava o necrotério da época em que o prédio ainda era um hospital. As geladeiras ainda estavam lá para quem quisesse ver. Essa história soou aos meus ouvidos como apenas mais uma lenda urbana, como aquele amigo que todo mundo tem, que tinha um vizinho que uma vez colocou o gato no forno de microondas. Mas olhando para a escuridão lá embaixo meu ceticismo me abandonou de uma só vez e só o que restou foi o medo. Nunca fui supersticioso, mas a idéia de entrar em um necrotério abandonado fugindo de um bando de birutas era assustadora.
Considerei as opções que tinha, respirei fundo e comecei a descer. No pé da escada havia todo tipo de tralha abandonada: móveis de escritório, bebedouros, máquinas de escrever. Gastei meia hora indo e voltando pelo corredor levando essas coisas para bloquear a primeira porta. Uma vez terminado esse trabalho, resolvi explorar meu novo esconderijo. Acionei o interruptor e algumas lâmpadas se acenderam no teto. Pude ver onde estava: Um corredor muito grande e baixo, com goteiras por todo canto. Nas paredes, como eu temia, duas fileiras de portas de aço se estendendo até o final do corredor. Dava calafrios só de pensar em quantos mortos haviam passado por ali. E se tivessem esquecido alguns deles na mudança? Rá! Uma idéia engraçada, não?
Lutei contra as imagens mórbidas que tentavam tomar conta da minha cabeça. A muito custo consegui vencê-las e passei a analisar minha situação. Tinha comigo apenas minha pasta e minha carteira. Esta última não seria de grande utilidade, então me concentrei na pasta. Apenas documentos, um bloco de anotações, três canetas, um estilete, um maço de cigarros pela metade, um isqueiro e, o mais importante, um pacote de bolachas de água e sal que seria minha única fonte de alimento. Embora enojado, teria que beber a água das goteiras. E torcer para que tudo voltasse ao normal. Peguei o bloco e uma das canetas e comecei a escrever isto aqui. Que Deus me ajude.

* * *

Pelo calendário do meu relógio passaram-se cinco dias desde então. Para mim parece mais, muito mais. Parece que estou aqui desde sempre. O barulho lá em cima não cessa um só minuto.
Acabo de comer a última bolacha do pacote e estou fumando o meu último cigarro. A água imunda me deixou doente e fraco. De vez em quando vomito um líquido de cor indefinida. Ouço vozes cochichando e vejo sombras saindo das geladeiras, e quero acreditar que sejam só efeitos da febre alta.
Sei que uma hora os loucos resolverão se juntar para forçar a porta que eu bloqueei. Mas não vou morrer assim, linchado por uma horda de malucos. Dou graças a Deus pelo meu estilete afiado. Um corte longitudinal nos pulsos e tudo estará resolvido.
* * *

Essa foi a narrativa que nós encontramos junto ao corpo do rapaz que se suicidou no subsolo do Mappin em setembro do ano passado. Só agora a família autorizou a divulgação desse texto.
Marcelo Araújo Gomes tinha 25 anos e era Analista de Sistemas de uma multinacional. Não bebia nem usava drogas. Sonhava ser escritor. Cortou os pulsos e sangrou até a morte. Talvez tenha sido melhor, o médico legista disse que ele não resistiria nem mais um dia, debilitado como estava.
Não existe segundo subsolo no prédio. O lugar onde Marcelo morreu era um cômodo minúsculo usado como depósito. Raramente alguém entrava lá. Um balconista que ia jogar uma cadeira velha no depósito viu o corpo e correu para chamar a polícia. Marcelo já estava morto havia pelo menos 36 horas.
Nada de incomum tinha sido registrado na região na semana anterior. Segundo os psiquiatras que estudaram o caso, os delírios de Marcelo foram provavelmente causados por stress. Esse tipo de insanidade costuma ser temporária, mas ele não teve tempo de se recuperar.
Nós, repórteres, chegamos pouco depois da polícia. E, acreditem, em 20 anos como repórter policial foi o caso mais estranho que já vi.