Pois largamos Abraão lá no meio do campo, os anjos indo embora. Mas vocês já conhecem Abraão, acham que ele deixou os caras irem? Nãaaaaaaaao… Foi atrás pra barganhar com os caras:
— Aê. Tipo, cês vão destruir Sodoma e Gomorra, beleza. Mas e se tiver uns 50 mano sangue bom lá, cês vão fuder com a vida dos caras? Porra, cês não vão fazer isso, né? Os caras nem fizeram nada, tão de boa. Cês não têm coragem.
— Tá, tá, Abraão. Se encontrarmos 50 justos, não destruiremos a cidade.
— Hum… — disse Abraão, desincorporando o mano que tinha baixado nele — Mas pra cinqüenta podem faltar cinco, e aí?
— Se encontrarmos 45 justos, não destruiremos Sodoma e Gomorra.
— Olha, cês me desculpem a chateação, mas e se forem 40, cês vão destruir as cidades?
— Não, Abraão.
— E se forem trintinha, vão detonar tudo?
— Não, Abraão, não.
— Vinte…?
— Os vinte salvam o resto, entendeu?
— Tá, mas e se forem dez?
— Porra, Abraão, cê tá pior que a tua patroa com aquele negócio de “riu”, “não ri”, “riu”, não ri”, “riu”, “não ri”… Não entendeu ainda a lógica da bagaça? Não tamos indo pra lá pra matar gente boa não, compreendeu? Cara chato…
E Abraão, percebendo que tinha irritado as santas, digo, os santos, deixou-os ir.

* * *

E olha a complicação aí de novo. Esse novo capítulo (Genêsis 19) começa assim: “E vieram os dois anjos a Sodoma à tarde”. Cadê o terceiro cara? Foi pra Gomorra? Voltou pro céu pra não perder as Pegadinhas de Jeová? Ou será que esse terceiro era deus mesmo e, como a gente sabe, ele não gosta de botar a mão na massa, muito menos se for pra fazer o serviço sujo?
Bom, deixemos passar. Chegaram os dois e estavam na praça da cidade quando Lot os viu e foi ao seu encontro.
— Bofes, digo, varões, vamos lá pra minha casa, vocês comem alguma coisa, dormem lá e depois continuam sua viagem.
— Não, cara, obrigado. Vamos dormir aqui na praça mesmo.
— Dormir na praça, varões? Ora, deixem de bobagem. Isso aí, além de lembrar título de música brega e irritante, é um risco aqui em Sodoma.
— Não temos medo, o Senhor nos protege.
— Não se fiem nisso! Já vi muitos casos de varões que dormiram na praça aqui em Sodoma e ficaram uma semana sentando de ladinho. Vai, vamos pra minha casa…
Os anjos pensaram bem e concluíram que seria mais fácil enfrentar uma bicha velha e enrustida do que toda uma população de gazelas. Foram então pra casa de Lot. Comeram muito bem (o jantar, seus pervertidos) e preparavam-se para dormir quando ouviram uma algazarra do lado de fora. Olharam e era toda a população de homens de todos os bairros de Sodoma, desde bichinhas impúberes até veadões macróbios. E berravam, as loucas:
— Lot, sua mona! Cadê os bofes que entraram no seu cafofo, que não se fala noutra coisa nessa cidade, menino? Traz eles aqui pra fora, pra gente se divertir um pouco. Faz tempo que não aparece carne nova nesses cafundós!
Dizem que anjo não tem sexo. Mas quem tem cu tem medo, e os dois tremeram na base nessa hora, e nunca ouvi falar que anjo não tivesse cu.
— Minhas irmãs — disse Lot, logo se corrigindo —, digo, meus irmãos! Tenho duas filhas virgens aqui, vocês podem fazer o que quiserem com elas, mas deixem esses meninos em paz, pois vieram para minha casa por que estavam morrrrrrrrrrtas de medo de vocês.
— Sai daí, biba velha! — Gritavam — Veio lá não sei de onde para a nossa cidade e quer decidir tudo, é? Então tá. A gente ia ser carinhoso com os dois meninos, mas agora vamos pegar você e a-ca-bar com essa sua carcaça pelancuda!
E avançaram sobre o pobre do Lot. Mas os anjos, recobrados do susto, puxaram Lot pra dentro e trancaram a porta. Estenderam então a mão e os moradores da cidade ficaram cegos. Cansadas de procurar a porta e de trombarem uns nos outros, as bichas foram embora. E disseram os anjos:
— Lot, quem você tem nessa cidade? Seu genro, seus filhos e suas filhas, né? Então pega todo mundo, porque nós vamos destruir isso aqui. Já sabíamos que o bicho tava pegando e viemos apenas para averiguação. Mas essa foi foda, imagina, voltar pro céu e não passar no teste da farinha. Foi a gota d’água. Vai embora com a sua família, que nós vamos foder essa bicharada de um jeito que eles nunca vão esquecer.

Tempos atrás discutíamos na mesa do bar a inscrição que gostaríamos de ter em nossas lápides. Eu escolhi um verso do Chico Buarque, A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu. Mas vai que o cara me manda um processo post mortem… Então hoje de manhã resolvi criar minha própria frase (boa maneira de começar o dia, hein?). Saíram duas. Meu lado de músico meia-boca fez essa:

“Mais uma corda que arrebebenta na harpa desafinada de deus”

Já o meu lado escritor medíocre prefere:

“Mais um rascunho no cesto de lixo de deus — Um dia ele acerta”

Já que algumas das pessoas que lêem este blog provavelmente serão responsáveis por essas coisas quando chegar a hora, é bom que não se esqueçam.