Voltemos à bíblia, fariseus.
Depois de tanto tempo no ar e anos sem nada de novo, as Pegadinhas de Jeová começaram a perder audiência para um reality show da concorrência, a Casa dos Capetas. Preocupado com a fuga dos anunciantes, deus convocou uma coletiva para falar das novidades em seu programa.
— Convencerei Abrão a cortar um pedaço do próprio pinto
Gargalhadas e descrença na platéia. Alguns repórteres chegaram a se levantar para deixar a sala. Deus estava delirando.
— Esperem! Ele não apenas fará isso, como cortará um pedaço do pinto de Ismael e de todos os servos e seus filhos.
Diante do tom convincente do velho, criou-se uma expectativa pelo que aconteceria no episódio daquela semana.
E deus não perdeu tempo: foi logo falar com Abrão (bons tempos! Qualquer coisinha que tinha pra resolver, deus ia logo falar com o sujeito. Fosse assim hoje e não teríamos tantos ateus por aí). E foi logo fazendo o que ele mais gostava: mudança de nomes. Abrão (que significa “Pai da Altura”) passaria a chamar-se Abraão (“Pai de uma multidão”), pois seriam incontáveis seus descendentes. Esse era o pacto que deus fazia com Abraão, e a assinatura do contrato seria esta: que cada homem da casa de Abraão (quer dizer, filhos, servos, filhos dos servos, todo mundo) teria cortada a pele do prepúcio. Abraão deu aquela olhadela meio de lado pra ver se não era brincadeira do cara. Aparentemente não era. “Pele de pica…”, pensou ele, e se segurou para não rir na cara de deus.
E deus continuava o discurso: Sarai (não sei o significado, se alguém souber me diga) passaria a chamar-se Sara (“Princesa”, olha que bonitinho) e seria abençoada com um filho. Aí já foi demais e Abraão começou a rir.
— Ô, seu deus, né por nada não. Sei que o senhor é o bom, é o tal, que pode tudo e essas coisas. Mas eu estou com quase cem anos, a patroa tá com noventa, o senhor tem idéia de quanto tempo faz que a gente nem pensa em dar uma? Não me faça passar por isso nessa idade, já tenho um filho, olha aí o Ismael. Deixa sua promessa se cumprir com ele mesmo, ter um filho aos 86 anos já foi milagre suficiente.
Mas deus não se alterou (estava num bom dia, se tivesse acordado de ovo virado cês já viram, Abraão tinha virado um monte de cinzas). Disse que sim, Abraão e Sara teriam um filho dali a um ano, e seria chamado Isaque, que quer dizer “riso”. É, isso mesmo, “riso”. Isso significa que, se nascido naquela época, o Risadinha (cujo nome significa “Meu amigo tocador de berimbau”) chamar-se-ia Isaque. Que coisa, não?
Abraão percebeu a tempo que tinha escapado de boa então aceitou tudo o que deus tinha falado. Sim, sim, filho, pele de pica, tudo bem, tudo bem. Deus foi embora satisfeito, preparado para quebrar recordes de audiência.
E Abraão voltou para o acampamento para dar início ao trabalho. Convocou todos os empregados e anunciou o pacto que acabara de fazer com deus. Mas os homens eram muitos, e as últimas fileiras não ouviam direito. Como esse negócio de telefone sem fio nunca funcionou, a notícia que chegou até lá é que Abraão resolvera cortar o pau de todo mundo, o que fez se formar outra fila, essa no RH, de empregados pedindo as contas.
E nesse ponto surge uma controvérsia: diz a bíblia que Abraão circuncidou a si mesmo, a Ismael e aos empregados. Imaginar que um homem rico e poderoso como ele fosse submeter-se a ficar sentado na frente de uma fila de homens com estrovenga pra fora é surreal demais. O mais lógico é que ele tenha mandado chamar Lot (o sobrinho de Sodoma e das Campinas, lembram?) para fazer o serviço. Aposto que Lot veio todo serelepe para ajudar o titio e deu conta do trabalho em tempo recorde.

Lembram que tinha um quadro com esse nome no “Viva a Noite”? Mas não é disso que eu vou falar.
Quero falar de um sonho que eu tive essa noite. Sonhei que conhecia um ourives judeu que tinha sua loja em Moscou. Fui visitá-lo nas férias e fiquei conhecendo um amigo dele, um russo que sabia tudo sobre o Brasil. Esse cara dizia que tinha atravessado o Atlântico num barco a remo até o Brasil. No meio do oceano, dizia ele, tinha se perdido. Depois de dias à deriva, já sem esperanças, apareceu outro barco a remo pilotado por um negão muito grande. O negão ensinou pra ele o caminho para o Brasil, e ele tinha certeza de ter sido auxiliado por um orixá. Pois bem, o cara sabia tudo de samba, falava português perfeitamente e o caralho. Aí corta pra outra cena, sonho é assim: Estou numa salinha atrás da loja do meu amigo judeu e ouço uma discussão. Vou lá ver e o russo-brasileiro está lá, apontando uma arma para o dono da loja. O judeu diz: “É só isso mesmo que eu espero de um stalinista feito você, seguidor de um ditador sanguinário”. O cara fica puto: “Eu estou traindo a memória de Stalin, não tenho escolha, então cala a boca e me passa as jóias”. Nessa hora eu entrei e falei pro cara que tinha ouvido tudo. Exigi metade do resultado do roubo, ele concordou. Depois que ele foi embora, devolvi essa metade para o judeu e quis saber o que tinha acontecido.
Pois bem, o quase-brasileiro tinha sido encarregado pelo governo russo de colher informações sobre a história do Brasil desde a Independência até os dias de hoje. Os caras desconfiavam que o Brasil era um país de mentira. Não acreditavam que o quadros das proclamações da Independência e da República retratassem a realidade. Tinha um outro quadro também, invenção do meu sonho, chamado “A Primeira Constituição”. Tinha uns caras sentados, uns de farda outros de terno, numa mesa ao ar livre, assinando um livro com uma pena. Ao lado da mesa tinha um cara com um estandarte e na frente uma multidão, no meio da qual despontavam outros estandartes, com mensagens patrióticas e tal. Pois então, os russos também achavam que era mentira isso.
E os caras queriam saber coisas mais recentes também: Onde estavam os milhões desviados pelo esquema PC? Por que o país mudara de moedas tantas vezes em vinte anos (e o cara tinha cédulas de cruzeiro, cruzado, cruzado novo, cruzeiro, cruzeiro real e real pra mostrar pros chefes dele, esqueci alguma?).
Marquei de encontrar o espião no dia seguinte e fui conversando com ele no carro. Pra conquistar a confiança dele, fui elogiando o Stalin, e ele me soltou outras informações.
Caí na besteira de comunicar as autoridades brasileiras e li no Pravda do dia seguinte (no sonho eu sabia russo, desnecessário dizer): “Brasil declara guerra à Rússia”. Pra garantir meu rabo, peguei minhas coisas e me empirulitei pro Brasil. Aqui chegando, comecei a notar o clima de guerra. Todo mundo convocado, inclusive eu. A Globo fazendo matéria atrás de matéria sobre as ex-repúblicas soviéticas. Tinha uma matéria falando dos muçulmanos do Azerbaijão, outra mostrando uma sinagoga na Letônia onde tocava uma banda de rock, outra mostrando uma missa ortodoxa na Lituânia, tudo isso para apoiar os diplomatas brasileiros que estavam naqueles países tentando convencê-los a permitirem a instalação de bases brasileiras em seu território.
Aí teve uma batalha naval (de verdade, não aquela do Bozo) e eu fui pra lá junto com o Risadinha (meu amigo, tocador de berimbau) num porta-aviões. Muito louca a batalha, com navios, submarinos, helicópteros, caças. Depois disso ainda fomos os dois pilotando uns caças pra destruir o Kremlin, muito louco!
Depois da destruição do Kremlin, começaram os rumores sobre o uso de armas nucleares por parte da Rússia. Aí ficou todo mundo aqui no Brasil com o cu na mão: Como é que não tínhamos pensado nisso? A TV começou a mostrar as manobras do exército russo preparando a ofensiva. E claro que eu acordei nessa hora.
Porra, esse sonho foi melhor do que qualquer coisa que eu escrevi nos últimos tempos!

Voltemos à bíblia, seus hereges.
Abrão e Sarai já estavam fazendo hora extra na terra (ele com oitenta e seis, ela com setenta e seis) e não tinham filhos, pois ela era estéril. Um dia, sentada em sua cadeira de balanço fazendo crochê, Sarai olhou com atenção para Agar, sua serva egípcia. Reparou que Agar ainda dava um caldo, e que talvez fosse um divertimento bom pro véio. Resolveu então que já era hora de compensar aquele chifre que tinha botado no marido havia tantos anos (que chifre? A história do faraó, lembra? Não??? Ó, cazzo mio. Relembre! Lembrou? Então eu continuo). Chamou Abrão num canto, fez a proposta, e como velho safado que fica de olho na empregada não é coisa recente, ele prontamente aceitou. Foi lá e pegou Agar daquele jeito meio desajeitado (e deus só fazendo crescer a audiência das Pegadinhas de Jeová com essa cena patética, um ancião fazendo sexo).
Bom, esse negócio de mulher querer causar inveja nas outras também não é coisa recente: uma vez grávida do patrão, Agar começou a perder o respeito com Sarai, já de olho na pensão gorda que ia receber, sem falar na herança do filho. E, claro, Sarai foi fazer aquela choradeira na orelha do velho Abrão, que já não tinha mais saco pra essas coisas. Mas homem sempre dá um jeito de tirar o corpo fora, e isso não é de agora: “Mulher, tenho nada com isso não, tô cheio de serviço e ainda tenho que escrever uma carta pro Lot hoje. Resolve aí o que cê vai fazer com sua empregada”. Os olhos de Sarai brilharam, e ela comeu quente sua vingança. Como não ia pegar bem expulsar o filho do marido de casa (da tenda, na verdade), começou a humilhar tanto a pobre da Agar que ela enfiou o rabo entre as pernas e fugiu para o deserto.
Mas eis que um anjo passeava por ali e encontrou Agar junto a uma fonte d’água. Devia ser um anjo patrulheiro, porque foi logo perguntando: “Quem é você? De onde vem? Para onde vai?”. Agar contou a história toda (puxando a sardinha para seu lado, lógico), e o anjo mandou que ela voltasse para a tenda de Sarai e fizesse as pazes com ela. Disse ainda que os descendentes de Agar seriam inumeráveis, e que ela deveria botar no filho que ia nascer o nome de Ismael, que significa “Deus está ouvindo”. E ainda falou que Ismael seria como um jumento bravo, e seria contra todos e todos contra ele.
Levando-se em conta que Ismael é o patriarca dos povos árabes, parecia até que o anjo estava prevendo coisas como a Guerra do Golfo e o Onze de Setembro.
Curiosidade
Aliás, dois nomes muito comuns nos países árabes são Ibrahim e Ismail, que nada mais são do que Abraão e Ismael. Quando da ocupação Árabe da Península Ibérica, esses nomes se propagaram pela região. Com as mudanças que sempre acontecem nesses casos, acabaram dando origem aos nomes Joaquim e Manuel, tão comuns em Portugal.

Voltando à Bíblia, depois de toda essa empolgação besta com a Casa dos Artistas (que foi uma marmelada da porra, mas legal mesmo assim): O faraó do Egito, pra compensar a plantação de chifres que tinha botado na cabeça de Abrão, deu muitos presentes a ele e a Lot. Pois bem, os dois tinham muitos animais e servos e o diabo a quatro, e os pastores de um e de outro começaram a brigar entre si. Então Abrão foi bater um papo com o sobrinho: Que que era aquilo, não precisava essa confusão toda, que ele escolhesse onde queria ficar, se fosse para o leste Abrão iria para o oeste e vice-versa. Pois bem, Lot já andava cansado dessa vida de cigano e achou muito boa a proposta do tio. Olhou para o leste, para as verdejantes campinas do Rio Jordão, e resolveu que ia ficar por ali, próximo às cidades de Sodoma e Gomorra. Vejam só se não era suspeito esse Lot: Gomorra… Sodoma… Campinas…
Pois bem, Abrão achou tudo muito bom, abraçou o sobrinho (mas meio de longe, nada de intimidades) e foi para o outro lado. Os dois voltaram a se encontrar mais tarde, quando houve uma guerra na região e Lot foi levado cativo com propósitos inomináveis, forçando Abrão a largar a vida besta, juntar 318 jagunços e ir resgatar o sobrinho esquisitão. E houve outros encontros, mas ficam para depois.

Chegando a Canaã, disse deus a Abrão que aquela era a terra que seria dada a seus descendentes. Ele ficou meio desconfiado, não ia viver o suficiente pra ver se era verdade ou não. Por via das dúvidas, ergueu um altar, não custava nada e o livrava da ira do hômi. Mas parece que dessa vez não adiantou, porque uma grande fome abateu-se sobre a região e Abrão resolveu ir para o Egito. Reparem bem: Nem começamos a história do cara e ele já foi de Ur pra Haram, de Haram pra Canaã, e agora de Canaã pro Egito. Se Sarai não fosse tão submissa, tinha mandado logo um “Sossega esse rabo, homem! Logo quando a gente já tava se acostumando com a vizinhança!”.
Pois foram para o Egito Abrão, Sarai, Ló e toda a curriola que vocês já conhecem. Por lá Abrão teve uma idéia de jerico (jerico, não Jericó, que é outra história, com paciência chegamos lá). Ah, a idéia: já que Sarai era muito bonita, ele ficou com medo de os egípcios o matarem para ficarem com a mulher, então combinou com ela que diriam que eram irmãos. Achou a idéia estúpida? Pois achou certo: oficiais do faraó notaram a beleza de Sarai e foram fazer a cabeça do soberano. O faraó não pensou duas vezes: mandou trazer Sarai para incorporá-la ao seu harém. Por causa dela Abrão passou a ser bem tratado, recebendo de presentes mais animais e servos do que já possuía. É isso mesmo: ele continuou dizendo que era irmão de Sarai e passou à História como o primeiro corno manso, mas disso ninguém lembra.
No entanto, a audiência das Pegadinhas de Jeová começou a oscilar, o público achando que aí já era humilhação demais, que uma coisa dessas não se fazia e coisa e tal. Então deus resolveu acabar com a festa e castigou o faraó e toda a sua família. Perguntando aqui e ali, o faraó acabou por descobrir a verdade e convocou Abrão: “Porra, Abrão, que que é isso? Então ela é sua mulher e você vem com papo de irmã? Faça-me o favor, que ideiazinha de jumento! Pega sua mulher, some daqui, não quero mais papo”. E Abrão meteu o rabo entre as pernas, abaixou os chifres, e pegou o caminho da roça, ou melhor, de Canaã — Lá vai esse homem viajar de novo.
E eis que a audiência das Pegadinhas de Jeová estabilizou-se novamente, atraindo novos anunciantes. E viu deus que tudo era bom.

Nem vem com chiadeira, é Abrão mesmo. Abraão ele passou a ser depois, e conto outro dia, porque a história desse cabra é tão grande que vou ter que dividir em vários posts. Pra começar, Abrão era de uma terra chamada Ur dos Caldeus, que mais tarde, se não me engano, veio a fazer parte do grande império babilônico. Os caldeus eram famosos por seus conhecimentos dos astros e dos fenômenos naturais, e eram consultados por soberanos de todo canto sobre o futuro, sobre as colheitas, sobre sonhos. Resumindo, eram os discípulos de Omar Cardoso da época.
Pois bem, um dia deu uma coceira em Abrão e ele resolveu sair de Ur. Pegou sua mulher Sarai (mais tarde o nome dela muda também, güenta aí) e seu sobrinho Ló (não sei se ele era padeiro pra fazer pão-de-ló, mas mais tarde foi dar com os costados em Sodoma, onde se queimava rosca adoidado, o que é muito suspeito) e foram todos para Harã.
Foi nesse tempo que deus, entediado como sempre, resolveu inventar a pegadinha. Não, seus podres, não é a pegadinha que vocês estão pensando, essa aí praticava-se muito em Sodoma e Gomorra. Estou falando daquela de câmera escondida e coisa e tal. Pois bem: deus fez um sorteio e Abrão foi o sorteado para ser a primeira vítima de pegadinha da história da Humanidade. As outras somos todos nós.
Mas então deus foi ter com Abrão e o convidou para ir ao boteco. Mas Abrão, que era varão reto (nada disso que vocês estão pensando, seus gomorritas!) disse que não bebia. “Caralho de asa…”, pensou o Senhor dos Exércitos. E convidou Abrão para um chá com bolinhos. No meio do chá, sapecou sua ordem: Abrão deveria sair de sua terra, onde estava muito bem, para vagar pelo mundo em busca da terra que deus mostraria. Abrão coçou a cabeça, certificou-se de que deus não estava brincando e disse “Tá bom”. Tinha Abrão 75 anos quando pegou Sarai, Ló, todos os servos e animais (o cara era rico, tão pensando o quê?) e partiu em direção a Canaã.
E eis que a audiência do programa “As Pegadinha de Jeová” (valeu a dica, ) começou a aumentar.
No próximo capítulo, Abrão no Egito.

Na-na-ni-na-não. Não vou falar de novela outra vez. Essa Torre de Babel é outra história da bíblia. Gerações depois do Dilúvio, um grande grupo juntou-se nas planícies do Oriente. E disse deus: “Eis que os homens juntaram-se nas planícies do Oriente”. E toda a humanidade falava a mesma língua. E disse deus: “Eis que todos falam a mesma língua”. E disseram uns aos outros: “Eia, edifiquemos uma torre cujo topo chegue até o céu e habitemos nela, para que não sejamos espalhados pela Terra”. E disse deus: “Epa…”. Ora, a ordem de deus era justamente essa, que crescessem e multiplicassem e enchessem a Terra. Enfurecido, deus resolveu acabar com tudo. Mas eis que o serviço de Relações Públicas o fez ver que seus atos impensados em momentos de cólera faziam seus índices de popularidade afundarem cada vez mais. Então, sendo sutil pela primeira vez na História, deus confundiu as línguas dos homens que, sem se entenderem mais, desistiram da construção da torre e espalharam-se pela Terra, que era o que o hômi queria desde o começo.
Os lugares bíblicos têm nomes com significado, como Betel, que significa “luz” e Brasília, que significa “Quem tem padrinho não morre pagão”. Esse lugar onde seria erguida a torre passou a chamar-se Babel, que significa “que puta zona virou isso aqui”.

Se logo na sua segunda geração a humanidade já promovia tamanha zona, imaginem a esculhambação depois de dez gerações. E olhe que neguinho vivia muito naquela época. Adão, o primeiro homem, viveu 930 anos! Enoque, que deve estar lá pela sétima geração, viveu 365 anos e foi levado pro céu sem morrer, e seu filho, Matusalém, viveu 969 anos. E pensar que hoje em dia chamamos qualquer um que chegue aos oitenta de Matusalém, pobres velhinhos…
Mas é de Noé que quero falar. Noé é o décimo dos patriarcas, como podemos ver naquelas intermináveis genealogias bíblicas que parecem o Para Todos do Chico Buarque, com Noé cantando: O meu pai era Lameque/Meu avô, Matusalém/ O meu bisavô, Enoque/ Meu tataravô, Jarede, bom vocês já sabem onde isso vai parar, dez caras que viveram pra cacete em ordem cronológica inversa até Adão.
Quando Noé estava com 500 anos (recém saído da adolescência, portanto), deus o chamou para tomar umas e conversar. Perguntou da patroa, das crianças, Noé disse que Sem, Cam e Jafet eram os filhos que ele tinha pedido a deus, aliás queria muito aproveitar a ocasião para agradecer, e sua família, seu deus, como é que vai? E deus disse que não tinha família, aliás, tinha um filho, mas era uma carta que ele queria jogar só em último caso, o que levava ao assunto que o trouxera até ali: Estava arrependido de ter criado o mundo e a humanidade, os homens portavam-se de forma escandalosa, matavam-se uns aos outros, enganavam-se, traíam-se, blasfemavam contra deus, e aposto cem ovelhas com você como botaram água nesse ketchup. Resumindo, deus resolvera destruir tudo com uma grande inundação, matar todo mundo afogado. Mas Noé era um cara legal, boa praça, e deus determinara que ele seria o pai da nova humanidade. Pegou um guardanapo e começou a desenhar: “Tá aqui, ó. Você vai construir essa caixa grande, botar uma porta, uma janelinha, uma rampa e encher a caixa com um casal de cada espécie de todos os animais”. Noé olhou o desenho, olhou pra deus pra ver se ele não estava brincando, olhou pro desenho de novo, coçou a barba e disse “Tudo bem”. Deus ficou muito feliz, pediu outra rodada e deu um prazo de cem anos para que Noé concluísse a empreitada.
No dia seguinte, com mil britadeiras dentro da cabeça e uma sede que dava vontade de beber todo o dilúvio, Noé se deu conta da sinuca de bico em que havia se enfiado. Era tarde demais para lamentar, no entanto, então chamou os filhos e perguntou o que eles achavam de um cruzeiro marítimo só de casais. Os três, claro, acharam supimpa. “Então peguem as ferramentas, que vamos construir o raio do barco”.
E passaram-se cem anos. Na hora de botar os animais dentro da arca, Noé percebeu que ali é que começava o trabalho de verdade. Tomou um porre homérico, embora Homero nem sonhasse em nascer naquele tempo, e foi pegando uns bichos a esmo. Pegou uns cachorros, umas cabras, umas vacas, galinhas, enfim, esses bichos de criação. Deus olhou lá de cima, viu que era trabalho demais pro cara e resolveu dar uma força. Sabia que seria impossível, por mais que quisesse, enfiar tudo quanto era animal na tal arca de Noé. Então fez uma seleção dos bichos que mais gostava, botou todo mundo em fila e foram entrando na arca. Bom, é claro que na arca já viviam os animais de sempre, cupins, formigas, traças, lesmas, baratas de todos os tipos, ratos. E os animais carregavam suas pulgas, carrapatos, vermes. Com essa nem deus contava.
Mas o negócio é que começou a chover, inundou tudo e Noé, sua esposa, seus filhos e suas noras passaram 40 dias navegando sem rumo. Depois desse tempo, as águas começaram a baixar e a arca encalhou no monte Ararat, na Armênia. A família ainda levou um tempo para sair, pois tinham uma partida de pôquer para terminar (“Ninguém sai! Ninguém Sai!”). Mas acabaram por sair, pois precisavam repovoar a terra. Além do mais, o cheiro da bicharada tornava-se insuportável. Saíram e deram de cara com o arco-íris no céu. Deus explicou a Noé que aquele arco representava o pacto que ele fazia com a humanidade a partir de então, de nunca mais destruir a terra pelas águas (inventando aí, de quebra, o contrato com letras miudinhas: “O que não me impede de, quando me der na telha, destruí-la pelo fogo, pelos terremotos, pela fome, pela peste ou outro meio que me aprouver”).
Todos viveriam felizes, se Noé meses depois não plantasse uma vinha, enchesse a cara mais do que nunca e amaldiçoasse um de seus filhos. Viu deus que tudo recomeçava, fez “tsk, tsk, tsk” e começou a se arrepender de novo.
Ah, e Noé viveu até os 950 anos.