Hoje este pobre blog abandonado chega aos 20 anos de existência. Já que ninguém lê mais blogs, fiz uma thread no Twitter que vou reproduzir mais ou menos aqui:

No começo de 2002, a @babslops começou a falar uma palavra que eu nunca tinha ouvido: BLOG. Que tinha feito um blog (que fui ver agora e ainda tá no ar), que era muito legal, que eu precisava fazer um blog, PRECISAVA. De tanto ela insistir, no dia 7 de fevereiro de 2002, há exatos 20 anos, eu criei uma conta no Blogger, penei um pouco pra configurar o negócio, escrevi o primeiro post, colei uma foto minha com o prof. Olavo de Carvalho e publiquei meu blog.

(“Jesus, me chicoteia!” era uma expressão que minha colega @vivianepita tinha aprendido numa viagem e voltou de férias falando o tempo todo. Achei engraçado, roubei.)

No mesmo dia, dois posts depois, contei rapidamente uma versão minha da Criação do mundo segundo a Bíblia. A Bárbara falou que tinha feito ela lembrar do Millôr, do Bernard Shaw… Minha vaidade não aguentou, e decidi que ia reescrever a Bíblia. Reescrevi os primeiros 11 livros, e parei no meio do 12º, II Reis. Vez em quando eu invento de escrever um capítulo novo. Ninguém mais lê, as pessoas pararam de ler texto na internet.

O título daquele primeiro post foi premonitório: a aventura tinha começado e eu não tinha ideia de aonde ela ia me levar. Foi graças ao blog que escrevi uns textos para revistas. Lendo um desses na Superinteressante mais o blog, o @gpavoni arriscou e me contratou em 2005. Foi meu primeiro emprego como jornalista. Anos depois, em 2009, o @arecobarudino me chamou para uma entrevista de emprego para uma vaga de roteirista no CQC. Até a hora de chegar lá eu achei que fosse trote. Ele lia meu blog (eu lia o dele também, mas não sabia), o Tas lia, o Gentili lia. Acabei contratado, e tô nessa profissão até hoje.

Fiz festas nos dois primeiros aniversários do blog. Veio gente do Brasil todo, casais se formaram. Na primeira festa, a @dani7macedo encasquetou que ia pegar o autor do blog Fale Com Deus. Pegou, namorou, casou, estão morando em Portugal de frente pro mar.

Em 2004, uma leitora mandou mensagem dizendo que gostava muito do que eu escrevia e coisa e tal. Chamei pra sair, ela aceitou. Fui muito sem noção, era um bar com os amigos, só ela de fora da turma. Mas ela se divertiu. Aí tem toda uma história, mas em janeiro de 2005 eu e @anacarlota começamos a namorar. Meses depois, quando eu decidi que ia pedir demissão do meu emprego de uma multinacional, ela me deu força. Ela me ensinou a dirigir aos 30 anos de idade.

Nos casamos em 2008. Em 2009, quando o @arecobarudino me ligou pra dizer que a vaga era minha, eu disse que ia pensar. Ele ficou desapontado. Cheguei em casa, falei pra Ana e ela: “Pensa sim. Mas se você decidir não aceitar, eu peço o divórcio”.

Ela sempre me empurra para o risco, baseada simplesmente numa confiança doida que ela tem no meu talento. Com o tempo, fui pegando um tiquinho dessa confiança dela. Te amo, minha leitora preferida.

Voltando ao blog: conheci muita gente, alguns que são amigos até hoje. Arrumei trabalho e casamento para mim e para os outros.

O @antoniotabet me conheceu lá no começo, quando ele também começou o Kibe Loco. Em 2018, ele me reencontrou no GNT, soube que eu era roteirista, e me indicou para uma vaga no canal de notícias que ele e a @MaraLuquet estavam começando. Assim eu fui parar no @CanalMyNews. O @MarceloTas, meu ídolo desde a infância, que era meu leitor sem eu saber, tá aí me aturando até hoje, agora no #Provoca.

É por coisas assim que, mesmo sem publicar mais nada lá (fora uns surtos eventuais), eu mantenho o blog, pago o registro do domínio e a hospedagem. A Bárbara tinha razão: é muito legal esse negócio de blog.

— Cês vão duvidar, vão rir da minha cara, mas basta pensar um pouco. Tudo se encaixa. Ali por 1950, 1960, tinha muito experimento com drogas psicodélicas rolando. O Humphry Osmond, um psiquiatra da Califórnia, fez vários testes com LSD. Parece que até o Aldous Huxley foi cobaia dele. Um outro psiquiatra, Ronald Sandison, tratou pacientes de um hospício inglês com LSD. Em Oklahoma, os caras mataram um elefante com a dose errada de LSD.

— Porra, overdosaram um elefante? Aí cê tá forçando. O que deram pra ele? Um ácido do tamanho de uma mesa de pôquer?

— LSD é poderoso, ô. Sabe quanto LSD precisa pra você começar a alucinar? 20 microgramas! Isso são 0,02 miligramas. Um miligrama é o peso de meia muriçoca! Se você pegar uma muriçoca e cortar em cem pedacinhos iguais, um pedacinho tem o mesmo peso da dose de LSD suficiente pra causar alucinação. Entendeu?

— Você estudou bastante o LSD, hein? E muriçoca também. Tô bobo com a amplidão do seu conhecimento.

— Cala a boca. Então. Teve os experimentos do Leary e do Alpert em Harvard. E aí tem vários testes em muitos países com mescalina, cogumelos, veneno de sapo. Vocês acham que o Brasil ia ficar de fora? Só que o Brasil é aquele negócio, né? Nunca teve transparência no governo. Os caras fizeram esterilizações em massa, esconderam epidemia de meningite, e isso só pra falar da época da ditadura. E governante brasileiro ser contra o método científico não é de hoje. Duplo cego, grupo de controle, tudo isso é chato demais. Aí o que os caras fizeram? Meteram psicodélico no povo, sem o povo saber.

— De onde cê tirou isso, cara?

— É só olhar! Você acha que aquele final dos anos 50 até o final dos 60 foi uma coincidência feliz? Primeiro Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lira, Donato, Alf, Menescal, Bôscoli. A bossa nova surge em 1958, em 1960 já dominou o mundo. O mundo! Poucos anos depois Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo, Gal Costa, Elis Regina, Maria Bethânia, Roberto e Erasmo… Tudo isso acontecendo ao mesmo tempo! Só um exemplo: as quatro primeiras colocadas no Festival da Record de 1967 foram Ponteio, do Edu Lobo, Domingo no Parque, do Gil, Roda Viva, do Chico e Alegria, Alegria, do Caetano. Um bando de moleques, todos com vinte e poucos anos. Quatro obras-primas da música popular universal, todas no mesmo ano, no mesmo país, no mesmo festival. Isso sem falar de Eu e A Brisa, O Cantador, Gabriela, Maria, Carnaval e Cinzas. Todas essas estavam no mesmíssimo festival! E cês vão me dizer que é coincidência?

— E isso prova o quê?

— Não prova nada. Mas dá indícios. Minha tese: o governo distribuiu psicodélicos para a população, e isso resultou numa explosão de criatividade nunca vista. Eu só falei de música, mas isso aconteceu no teatro, nas artes plásticas, no cinema… O Cinema Novo, cara! Acontecendo junto com a Tropicália! Coincidência? Nunca!

— Mas como que o governo ia distribuir isso?

— Aí é que está. Só pode ter sido na água. Só que era arriscado deixar o povo beber essa droga desconhecida. Vai que acontece que nem com o Tusko.

— Que Tusko?

— O elefante que morreu de ácido. Era Tusko o nome dele. Não falei? Pois era.

— E essa droga, então, é desconhecida?

— Só pode ser! Porque ela precisa ter algumas características que o LSD, por exemplo, não tem. Primeiro: tem que ser absorvida pela pele de forma mais eficiente, com um contato muito rápido. Segundo: tem que ser ativada só a partir de uma certa temperatura da água. Percebe? Porque a ideia era que o negócio ficasse ativo só na água quente, no mínimo morna.

— Mas por quê?

— Qual é a coisa que todo brasileiro faz todo dia? Pode faltar tudo, mas esse ritual não falha… O banho!

— Os caras botaram droga no banho do brasileiro? É isso que cê tá dizendo?

— Pensa, cara! PENSA! Quando é que você tem suas ideias? Aquelas que você não sabe de onde vieram? Onde vem a solução para problemas que estavam te fazendo quebrar a cabeça? No banho! Sempre no banho!

— Ah, mano, para…

— Tudo se encaixa! E digo mais: essa droga tem uma meia-vida de vinte anos. A cada vinte anos, a concentração dela se reduz pela metade.

— Como cê pode saber de uma coisa dessa?!

— Fácil: é claro que os militares, moralistas como eram, não iam deixar isso prosseguir. Devem ter demorado um tempo para descobrir, era provavelmente um projeto ultrassecreto. Mas digamos que eles tenham cortado o programa em 1970. Só em 1990 a dose se reduziu à metade. Deu tempo de aparecer o Clube da Esquina, o Belchior e o Fagner, o Raul Seixas… Cara, imagina o Raul Seixas, cheio de droga na cabeça, de pinga, e ainda vinha um reforço no banho. O João Gilberto com a maconha dele. Ou o Tim Maia. Um coquetel criativo! Veio o rock dos anos 80, que era bom, mas não chegava perto da música de 10 ou 15 anos antes. A partir de 1990, a gente vê uma queda de qualidade. Mas a criatividade ainda resiste. Teve o mangue beat, muita coisa no rap. E o pagode, não vamos nos esquecer do pagode! Podem torcer o nariz. Leandro Lehart, Péricles, Alexandre Pires… Esses caras são artistas, mentes musicais. São algum Gilberto Gil? Claro que não, porque não tiveram acesso à mesma dose do Gil. Mas ainda assim!

— Bom, então agora já deve ter acabado a droga.

— Não digo que tenha acabado. Mas a dose de 2010 era a metade daquela de 1990. Em 2030 será a metade daquela de 2010. Eu não esperaria muita coisa.

— Peraí, você não explicou por que a cada 20 anos, e não 15 ou 22…

— Por causa da nostalgia! Pode reparar: a cada década que começa, vem uma nostalgia de duas décadas atrás. Nos anos 80 teve o revival dos anos 60. Nos 90, até a calça boca-de-sino dos anos 70 voltou. Nos 2000 todo lugar tinha festa dos anos 80. O que é isso? É saudade de uma época em que a música, a moda, o cinema, todas as artes eram melhores.

— Cara, o que você tomou pra pensar nisso?

— O que eu tomei? Eu tomei banho! VOCÊS NÃO TÃO PRESTANDO ATENÇÃO!

(para a Tatiana Sendin, que falou que eu devia escrever um texto sobre as ideias que tenho no banho)

A conversa que deu origem ao texto

O universo é uma câmara de eco, e o cu é o receptáculo do desejo.

Foi isso que eu descobri nesses anos todos. Eu sei que a senhora não vai acreditar. Médico, né? Aquela mentalidade bem cartesiana. Como canta o Roberto Carlos: “Quem espera que a vida seja feita de ilusão pode até ficar maluco ou morrer na solidão”. A senhora vai ouvir minha história e achar que eu me iludi e fiquei maluco. Só a parte da solidão que não, porque cê viu minha mulher, né? Que mulher… O Sistema que me deu, entre tantas outras coisas. Ninguém é obrigado a acreditar, mas assim que é.

Começou na minha adolescência, mas eu só fui saber muito tempo depois. Eu enfiava legumes no rabo, aquilo me dava uma coisinha gostosa, sabe? A pontinha de uma cenoura, uma cosquinha com o cabelinho da cebola, aos poucos um pepino… Uma vez enfiei um dente de alho, não recomendo: aquilo me deu um febrão… Eu fazia porque era gostoso. Foi nessa época que virei vegetariano, mas não associei uma coisa à outra. Olha como as coisas acontecem e a gente não percebe.

Eu tô te contando porque sei bem como é. Não é a primeira vez que eu venho parar no hospital por causa disso. Essas histórias viram folclore, todo médico gosta de contar em festa. “O cara chegou com uma cenoura no cu, falou que tava trocando a cortina pelado, caiu e a cenoura entrou por acidente…” Então já falo logo que nada foi acidente. Quer dizer, só dessa vez que foi. Eu enfio as coisas no rabo. O rabo é meu. Meu corpo, minhas regras. Aqueles versos do Rei, “se faço alguma coisa sempre alguém vem me dizer que isso ou aquilo não se deve fazer”. Se eu for dar atenção a tudo que dizem que devo fazer ou não, acabo não fazendo nada que eu gosto. Isso é vida? Não é vida.

Mas eu tava falando dos legumes e do vegetarianismo. Não percebi a relação. Isso veio depois, aos 18 anos. Eu estava entediado no quarto, olhei o carrinho na estante. Um Hot Weels daquela Ferrari 430 Scuderia, sabe? Pequenininha, vermelha, linhas suaves… Eu tava sem nada pra fazer, enfiei o carrinho na bunda. Senti aquele geladinho, muito gostoso, mas fiquei com medo dele escorregar e eu ter que ir pro hospital. Aos 18 anos a gente ainda se preocupa muito com o que os outros vão pensar, né?

Dois dias depois, ganhei um Palio numa rifa. Fiquei feliz demais, mas claro que não associei. Eu fui começar a perceber uns meses mais tarde. Segundo semestre da faculdade, estava difícil pagar a mensalidade. Meu pai ganhava pouco, minha mãe já tinha morrido. Eu, sem experiência, não conseguia emprego. Fiquei revoltado com meu pai. “Precisava tanto estudo pra ganhar essa mixaria?”, eu pensava. “Enfia o diploma no cu”. Aí uma ideia leva à outra, peguei o canudo do diploma do meu pai e soquei no rabo. No mesmo dia me ligaram da faculdade dizendo que eu tinha sido aprovado para uma bolsa integral.

Ali eu comecei a desconfiar e fazer alguns testes. Quando alguma matéria era difícil, eu arrancava as páginas do livro e enfiava. Juro, minutos depois minha mente se iluminava e eu percebia que tinha aprendido tudo. Fui destaque da minha turma, melhor aluno. Professores e colegas me elogiavam, meu pai inchava de orgulho, e eu só na modéstia. Mesmo porque eu não tinha mérito nenhum: era o Sistema funcionando, mas eu não podia contar pra ninguém. Então falava que estudava, que me esforçava, essas coisas. Às vezes as mentiras também ajudam a viver, como canta o Roberto Carlos.

Com o tempo, fui descobrindo um pouco da lógica do Sistema. A primeira coisa: depende do tempo e da profundidade. Sou um vegetariano convicto porque enfiava os vegetais com gosto. Mas ganhei só um Palio na rifa porque deixei a Ferrari dentro por pouco tempo, e só até o pára-brisa.

Outra regra: não dá pra usar o mesmo objeto duas vezes. Ou outro objeto da mesma espécie. Uma vez realizado o desejo, ele não se repete. Tentei enfiar a mesma Ferrari no bufante, não aconteceu nada. Experimentei com outras Ferraris, depois com outros carrinhos. A única coisa que ganhei foi uma visita ao pronto-socorro com um Cadillac entalado. E fui rindo no caminho do hospital, cantarolando “o Cadillac, bi-bi!, quero consertar meu Cadillac”. Não funciona, então estou até hoje com aquele Palio. Eu tenho outros carros, mas meu coração ficou com o calhambeque, sabe?

Terceira regra que ficou muito clara para mim: algo que você ganha do Sistema não pode ser usado para ganhar outra coisa. Uma vez enfiei um tubinho de moedas de 10 centavos. Tinha uns dois reais ali. Fui andar pela rua com o tubinho enfiado, dei dois passos e achei 100 reais. Aí pensei: “se eu multipliquei o que tinha por 50, posso ir multiplicando até ficar milionário, bilionário!”. Voltei correndo pra casa, tirei o tubinho, enfiei a nota de 100 enroladinha. Passei dois dias com esses 100 reais, como direi, aplicados na poupança, e o retorno foi zero.

Essa tem sido minha vida, doutora. Se me formei, devo ao Sistema. Se tenho o emprego dos sonhos, devo ao anúncio que imprimi em papel cartão, enrolei e… bom, você sabe. Todo mundo fala da minha mulher. “Como pode, um cara desse com essa deusa?”, mas ninguém viu o que eu passei. Uma semana tomando Imosec com uma Barbie socada no borga, só os sapatinhos pra fora. Mas se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi.

E agora a senhora já deve ter entendido minha situação. Sou fã do Roberto Carlos. Desde criança eu quero conhecer o Rei, mas não tinha como. Roberto Carlos não é um cara que cê manda um zap, “e aí, Rei, bora tomar uma?”. Eu não tinha nem ideia de como me aproximar dele. Até que me veio essa luz, que pode não ser Jesus, mas foi abençoada. Era pra ser só a pontinha da perna mecânica, mas me desequilibrei e… Bom, a senhora viu o resultado. Agradeço a Deus e à senhora por salvarem minha vida. Mas foi bom que tenha sido grave assim. Mais dias no hospital, maior probabilidade de o Rei vir me visitar. Eu sei que ele vem. Eu acredito no Sistema.

O tweet que deu origem ao texto
O tweet que deu origem ao texto

21 de dezembro

Faz um mês que nos mudamos, não é justo.

A colher já está em brasa.

23 de novembro

Nos mudamos hoje. Para quem morava num apartamento de 60 metros quadrados com duas crianças e um cachorro, a nova casa é um palácio. As crianças exploram, riem a cada novo cômodo, surpresas com o tamanho da casa, uma matrioska inesgotável. O cachorro está tentando entender o conceito de quintal. Corre até os fundos, fareja, faz xixi, corre de volta até a porta, percorre o perímetro, bebe água para poder fazer mais xixi. Mal pode acreditar que é tudo dele, e quer garantir marcando bem o território.

Celina está radiante como não a via há anos. Enquanto abre janelas e mais janelas para arejar a casa, parece que abre janelas por dentro dela também, e se areja. Se ela está feliz, eu também estou.

29 de novembro

Mudança é um processo lento. Quase uma semana depois, ainda há caixas a abrir. Ignorávamos tantas posses, tanta tralha. O processo fica mais lento ainda quando a memória entra no jogo. Um brinquedo, uma foto, uma quinquilharia qualquer desempacotada pode ser o dominó que desencadeará a reação em cadeia das reminescências. Essa boneca você ganhou quando quebrou o braço jogando futebol, essa foto a gente tirou no dia do assalto em Buenos Aires, e isso aqui é o quê?, “você não lembra?, não, Arraial D’Ajuda, o hippie que vendia erva pra gente queria empurrar o artesanato também…, ah, é, aí eu comprei pra ele parar de encher, que erva pai?, erva-mate.

30 de novembro

Tinha um cofre embaixo da escada da edícola. Eu bem desconfiei que aquele espaço podia ser um armário, por isso fui fuçar. O painel de madeira se abriu, e atrás dele uma porta de aço verde, com um disco de números. A porta é quadrada, 90 por 90 centímetros.

No mesmo instante em que anuncio o achado, a família se divide da forma de sempre. Aline, a mais nova, é aventureira como eu, e quer saber como vamos abrir o cofre, imagina o que tem dentro, será que é dinheiro, pai? Celina e Artur acham melhor eu me livrar dele, sabe Deus o que tem aí, pode ser coisa roubada, pode ser uma arma, pode ser antraz (Artur lê muito, andou lendo sobre bioterrorismo, está impressionado). Eu garanto que vou tomar todos os cuidados, se não querem que eu abra, não abro.

Mais tarde, Aline me pergunta se não vou tentar abrir mesmo. Ela me conhece bem. Pesquisamos juntos na internet e descobrimos que o cofre é da marca Aço Brasil, que fechou em 1976. A empresa fabricava cofres sob medida para a alta classe paulistana. Nossa casa é grande mas nunca foi da alta classe. O cofre se torna um mistério maior ainda. Quem mandou fazer o trambolho? O que tem dentro dele?

Encontramos também um tutorial de como abrir cofres desse tipo. Envolve uma série de passos complicados, um gráfico cartesiano e um estetoscópio. Será verdade, parece coisa de filme, não custa tentar, isso é. Entro no site de uma loja de suprimentos médicos e compro um estetoscópio. Diz que chega em dois dias.

02 de dezembro

Eu e Aline passamos o dia acompanhando o tutorial, girando a roda do cofre, nos revezando ao estetoscópio, discutindo, tudo sob o olhar dos cautelosos da casa. Não funcionou. Claro que não, onde é que eu estava com a cabeça? Estetoscópio…

Na hora do jantar, minha filha e eu fomos objeto de chacota. Fazer o quê? Foi ridículo, tivemos que engolir.

03 de dezembro

Meu filho é a pessoa mais transparente que conheço. Ele não precisa dizer nada, todo mundo sabe quando há algo de errado. Pergunto o que há, nada, pai. Não insisto.

No fim do dia ele se aproxima, olha para os lados. Me mostra uma foto no celular. Uma sequência de números e letras gravados em madeira.

03D — 52E — 66D — 95E — 19D

Onde você achou isso?, embaixo de um taco solto no quarto, será que é?, deve ser, amanhã vou testar, toma cuidado.

Ele sempre quer que todo mundo tome cuidado.

04 de dezembro

Acordei cedo, chamei Aline e descemos. Ainda estávamos na metade da sequência numérica quando Celina e Artur também desceram. 3 para a direita, 52 para a esquerda, 66 para a direita etc. No último giro do disco, o clique. A maçaneta gira depois de alguma força. Abro o cofre e… decepção. Que boneca feia, parece o demônio, o pescoço tá quebrado, pra que guardar isso num cofre?, eu sei lá.

Uma boneca e uma caixa de madeira com cadeado. Parece piada.

08 de dezembro

Esta é a casa mais triste do mundo. Não tivemos tempo de criar memórias nela, mas a todo momento ouço a voz de Celina, ou vejo seu rosto.

Minha mulher, minha namorada. Um acidente estúpido na escada, o voo no vazio, o pescoço quebrado. O que eu faço, meu Deus?

11 de dezembro

Nós, os sobreviventes, somos três fantasmas assombrando a casa. Comemos quando precisamos, dormimos a qualquer hora. Na maior parte do tempo, sentamos no sofá em frente à TV ligada, sem ver nada. A ausência de Celina é um peso nos ombros. Estamos exaustos de tristeza. Impossível viver assim.

12 de dezembro

Hoje decidi dar um trato no quintal, levar o cachorro para passear, preparei o café-da-manhã das crianças. A vida não vai voltar ao normal, mas alguma aparência de normalidade é necessária. Senão, enlouquecemos.

Lembrei do cofre. A caixa continuava lá com seu cadeado. O cadeado era sólido, mas a madeira estava podre. Forcei um pouco com a chave-de-fenda, e a coisa toda se arrebentou. Quase morro de susto. Duas bonecas queimadas. Fechei a caixa como deu, joguei de volta dentro do cofre, tranquei.

15 de dezembro

Ninguém imagina um dia perder os filhos num incêndio.

18 de dezembro

Quanto álcool o corpo humano pode suportar antes de sucumbir? Pretendo descobrir em breve.

20 de dezembro

O cofre. Desci lá, queimei e enterrei as bonecas (que diferença faz agora?). Peguei o martelo pra arrebentar tudo.

Claro que o cofre tinha um fundo falso. Óbvio. Por que as surpresas acabariam, se ainda estou vivo?

Atrás do fundo falso, outra boneca. Sem olhos.

Decidi que não vou esperar. Se é para acontecer, que pelo menos eu tenha algum controle. Uma garrafa de uísque para dar coragem e anestesiar, uma colher quente. Resolvo tudo e o cofre fica contente.

Abri o portão e deixei o cachorro sair. Que tenha melhor sorte do que eu.

21 de dezembro

Faz um mês que nos mudamos, não é justo.

A colher já está em brasa.

No começo, ficou todo mundo meio sem acreditar. Parecia um sonho. Depois de tanto tempo fechados em casa, finalmente chegava o final da quarentena.

— Acabou! — gritou um na rua. Outro, outro. Uma senhora da janela. — Acabou!

A humanidade podia enfim respirar. Melhor: respirar sem uma máscara na cara. A vacina demorou, mas saiu. Meses depois, o primeiro antiviral eficaz contra o novo coronavírus. Com uma esforço tremendo de governos, corporações e indivíduos de todo o globo, a doença foi erradicada do planeta.

Quando saiu a notícia, todos ficaram desconfiados. Ninguém sabia mais como sair à rua, como respirar sem duas camadas de algodão separando o rosto da atmosfera. Aos poucos foram saindo. Um, outro, outro. Acabou! Nas ruas e calçadas, começou um movimento espontâneo: pessoas jogavam suas máscaras de todos os tamanhos e formatos, com todas as estampas, despejavam álcool gel sobre elas e acendiam o fogo. Nunca mais isso.

— Vou ficar três meses sem lavar a mão! — disse um.

— Eu não preciso mais dar banho nas minhas compras! — se deu conta uma moça, maravilhada.

E a alegria quando se deram conta de que era possível novamente tocar outras pessoas? Estranhos se abraçavam e beijavam na rua. Divórcios de quarentena se desfaziam, reconstruindo casamentos. Casais de namorados separados pela pandemia tiravam o atraso de meses de desejo represado.

Foram duas semanas de glória e esperança no futuro da humanidade. A vida seria melhor, mais leve, mais solidária. Velhos rancores se amainaram. Armistícios foram declarados. Dívidas, perdoadas. O otimismo geral refletiu no mercado financeiro. Havia no ar uma promessa de prosperidade inédita na história humana.

E aí veio o asteroide.

Aos dias 23 do mês de março de 2021, às 9 horas e 30 minutos, me dirigi juntamente com meus homens ao estabelecimento do tipo shopping center ██████████ Shopping, no bairro de ████████ desta capital, para os procedimentos de costume.

Como é do conhecimento de todos, o governo do estado d█ ███████████ decretou em junho de 2020 a reabertura dos shopping centers do estado. À época, a decisão foi recebida com críticas, que se transformaram em louvores à argúcia do governador assim que o plano foi revelado.

Nosso papel é ir duas vezes por semana aos estabelecimentos para levar mantimentos aos confinados, monitorar os doentes, retirar e incinerar os mortos. Em fevereiro deste ano, o comando da Polícia Militar mudou minha escala. Solicitei aos superiores que revissem a decisão, já que havia conflito pessoal.

Como é do conhecimento de todos (agora), meu pai, o coronel reformado do Exército Brasileiro ██████ ██ ████████, é um dos confinados no ██████████ Shopping desde julho do ano passado. Em momento algum desde então eu tentei usar meu cargo ou qualquer influência que pudesse ter para resgatar meu pai, como o fizeram muitos colegas com parentes, amigos e cônjuges. Se o coronel quis furar a quarentena e caiu na armadilha do Estado, eu, como cidadão e policial militar, devo aceitar seu destino. Não significa, no entanto, que não me preocupe com o bem estar dele. Por isso solicitei repetidas vezes que o referido estabelecimento comercial fosse excluído de minha escala, mas sem sucesso.

Sendo assim, no dia supracitado, eu e meus homens fomos ao estabelecimento para os procedimentos de rotina. Tocamos a sirene de aviso antes de abrir a porta lateral, esperamos 30 segundos conforme determinado pelo protocolo, verificamos nossos trajes de proteção, nossas armas, e entramos.

Tudo estava dentro da normalidade. Os confinados encostados nas paredes de costas para nós. Saímos pelas áreas pré-determinadas para contagem, e recebemos as informações dos líderes indicados para cada piso do shopping. Na semana anterior, eles eram 547. Agora eram 522: 24 haviam morrido, e uma confinada dera à luz um casal de gêmeos. Os recém-nascidos passavam bem. O líder do piso nos entregou uma lista de necessidades [anexa]: fraldas, fórmula, vacinas. Um dos homens pegou a lista e prometeu fazer o possível. Passei para ver os gêmeos. A menina com 53 cm de comprimento, 3,760 Kg de peso. O menino, 51,5 cm, 3,510 Kg. A mãe os estava amamentando normalmente. O pai: desconhecido. Essa gente vive de qualquer maneira.

Estava eu saindo do quiosque de açaí que a recém-mãe tinha escolhido como seu berçário quando ouvi um grito: “R█████!”. R█████ era meu apelido de infância. Olhei na direção do grito e vi um velho que custei a identificar. Usava cuecas samba-canção ainda com o dispositivo antifurto da C&A pregado ao cós, e uma jaqueta muito maior do que ele, fechada até o pescoço. Meu pai perdera muito peso. Os joelhos pareciam bolas de bilhar. Os ossos da face quase furavam a pele seca. Ele sorria enquanto vinha na minha direção, de braços abertos.

Os confinados não podem se aproximar da equipe de apoio. Todos eles sabem disso desde o começo. Os que tentaram, conheceram o protocolo de segurança: um tiro para cima, de aviso, o segundo tiro para abater. Era meu pai, mas a segurança de todos estava em jogo.

— Coronel! — usei a patente para apelar aos brios do velho. — Afaste-se.

Ele continuou na minha direção, o sorriso mais largo ainda, os braços mais abertos. Dei o tiro para o ar, ele nem piscou. Continuou vindo na minha direção. Dei a ordem ao soldado mais próximo para se preparar para alvejar o coronel. Ele hesitou. Sabia que era meu pai. Eu mesmo atirei.

O que veio depois já é conhecido dos senhores: diante de meus olhos, meu pai explodiu. Perdi seis dos meus homens nesse dia. Outros confinados morreram. A mãe dos gêmeos morreu junto com o filho que estava amamentando. A menina sobreviveu.

Bolas de tênis, muitas cabeças de palito de fósforo, pregos, e dias de trabalho paciente: isso foi tudo de que ele precisou para construir seu explosivo de impacto [foto anexa]. Material que havia de sobra no shopping. Com isso e os anos de experiência nas Forças Armadas, meu pai morreu e levou junto com ele doze pessoas, ferindo outras 23.

Depois de chamar reforços para auxiliar na limpeza e remoção de mortos e feridos (confinados para a incineração, soldados para o IML), perfilamos os confinados para contagem e interrogatório [vídeo anexo]. Todos negaram participação ou conhecimento do ato terrorista do coronel. Mas quando saímos para o estacionamento, nossas três viaturas estavam com os pneus furados [foto anexa]. As câmeras de segurança do shopping, descobrimos então, estavam inutilizadas [foto anexa].

Como é do conhecimento de todos, o conflito recrudesceu no último mês. Outros atentados ceifaram vidas de soldados e oficiais. Bombas de bolas de tênis e de produtos de limpeza, armadilhas com objetos perfuro-contundentes, projéteis improvisados com bolinhas de gude e parafusos. No Shopping ██████ Parque, em ██████████, o sargento L██████ morreu junto com dois soldados, esmagados por um piano de cauda lançado da praça de alimentação até o primeiro piso. No ██████ Center, quatro soldados foram sacrificados ao se arriscarem numa escada rolante que os confinados sabotaram. Adolescentes com lança-chamas feitos de spray de cabelo conseguiram ferir gravemente cinco homens, antes de serem abatidos.

Dado o exposto, minha recomendação é que deixemos os confinados à própria sorte. Se não podem viver em sociedade, que sejam dela definitivamente excluídos. O investimento do Estado deve ser direcionado para o reforço da segurança dessas construções, para que ninguém delas escape.

É o relatório.

Tenente R█████████ ██████ ██ ████████
██º Batalhão da Policia Militar do Estado d█ ████████████
25/03/2021

ADENDO: As cinzas de meu pai, o coronel reformado ██████ ██ ████████, foram misturadas às cinzas de todos os outros confinados mortos, e lançadas ao vento. Repilo todos os rumores de que eu as teria levado para casa, ou dado a elas outra destinação. Não aceito e nem pratico tratamento diferenciado motivado por parentela, amizade ou afinidade. Todos os que afirmarem o contrário terão de prová-lo em juízo.

A primeira sensação é a luz atravessando as pálpebras, uma luz tão intensa que ofusca os olhos fechados. A segunda sensação é uma dor excruciante no tórax. Você quer gritar, não consegue. Tenta se mexer, se levantar, o corpo não responde. Decide abrir os olhos, mesmo com a luz: impossível. Ao redor, bipes, vozes, passos abafados. Alguém mexe no seu peito. Não: alguém mexe dentro do seu peito.

Você se lembra: “hoje em dia o risco é mínimo”, eles disseram. Transplante de coração. Você vinha se preparando para o pior, mas nunca ia imaginar algo assim. Seu cérebro é um celular sem crédito nem WiFi, que recebe chamadas e mensagens, mas não envia nada.

Com um esforço imenso, você consegue abrir um pouquinho os olhos. A luz é desesperadora, a dor é muito mais. No canto da visão o cirurgião tira a máscara. Você o reconhece: Dr. Orestes, o do risco mínimo, balança a cabeça e fala um horário. Está pronunciando sua morte. Você tenta mexer um dedo, piscar os olhos, qualquer sinal que possa chamar a atenção de alguém. Nada. De puro choque e desespero, você desmaia.

Quando acorda, percebe com alívio que consegue se mexer. Mexe os dedos dos pés, das mãos, pisca os olhos. Está escuro, aconchegante, o travesseiro é macio. Quer espreguiçar, mas não tem espaço. Explora ao seu redor. Os espaço é mínimo. Você tenta erguer a cabeça e bate a testa na madeira.

Minha geração inteira era louca por ele, escutava o tempo todo, só eu era indiferente. Foi uma febre na minha época, e posso dizer que passei incólume.

Acho que fui um adolescente chato, sei lá. Metido a besta. Só queria saber dos americanos, dos ingleses. Meus pais diziam que eu devia valorizar o produto nacional, e eu nem dava bola.

Não sei explicar o porquê. Talvez o jeito dele de ficar parado recebendo o amor da multidão, o olhar num ponto fixo do espaço. Talvez da voz, que eu achava dramática demais, meio ridícula. O estilo dele também não me agradava. Talvez minha implicância viesse das pessoas na plateia: rapazes de olhos brilhando, meninas aos gritos e prantos. Achava tudo aquilo uma histeria, uma bobagem, por um cara que nem era lá essas coisas.

Fiquei triste quando ele se matou, sim. Um cara na idade dele meter uma bala na cabeça, é triste mesmo. Mas isso não me fez mudar de opinião. Não é porque o cara morreu que eu vou começar a gostar dele. Muitos amigos começaram até a relativizar: diziam que ele tinha se afastado da proposta inicial, traído o movimento, que o sucesso tinha subido à cabeça. A mim, era indiferente: não gostava antes, não passei a gostar depois.

Mas antes disso, meu Deus, que inferno! Como único a não ser picado por esse bichinho, eu me sentia excluído. Quando ele fez a turnê pela Europa, vários amigos meus foram na onda. Tem um que jura até hoje que acompanhou o cara em todas as cidades. Ninguém acredita, mas ele insiste. É patético.

A turnê foi aquela loucura que todo mundo lembra. Polônia, Áustria, Tchecoslováquia (naquela época ainda era Tchecoslováquia). Minha esperança era que ele fracassasse na França. Franceses são nacionalistas e blasé, jamais aceitariam produto estrangeiro assim. Para meu desespero, até os franceses se renderam.

Bom, mas aí aconteceu tudo aquilo que vocês sabem, ele deu um tiro na cabeça e encerrou a carreira prematuramente. Os fãs foram deixando ele de lado, tinham até vergonha de seu entusiasmo adolescente. Agora, tantos anos depois, vejo um revival daquela idolatria. Acho uma bobagem. Ele era ridículo naquele tempo; o é muito mais agora. Sempre preferi os americanos, os ingleses. Roosevelt e Churchill eram os caras.

Esse papo de Führer nunca me convenceu.

— Tava onde?

— Por aí.

— Por aí onde, menino? Os bichos tão morrendo de fome.

— Que drama, mãe! Eles comeram de manhã…

— Eu já te falei que precisa ter horário pra tudo: pra dar comida, pra limpar o curral, pra trocar a palha do estábulo… E você passeando. “Por aí.” Por aí onde? Já te falei que é perigoso. A gente não sabe o que tem pra lá.

— Se todo mundo pensar assim, a gente nunca vai saber o que tem nesse planeta.

— A gente não precisa andar por aí pra saber. Tem um monte de sonda lá pra dentro, tem satélite em órbita, justamente pra isso. Os cientistas lá na base exploram o planeta e mandam informações pra gente. O nosso papel é colonizar.

— Você e o pai se contentam com pouco, né?

— Com pouco? Com POUCO? Menino, você sabe o que isso aqui significa? Quanto sacrifício, quanto dinheiro? Duzentos anos atrás ninguém nem pensava em colocar uma pessoa no espaço. Faz só 150 anos que a gente começou a explorar o nosso sistema solar.

— Nossa, 150 anos, praticamente ontem…

— Eu ODEIO quando você é debochado. 150 anos é muito pouco no contexto histórico. Uma espécie sair da limitação do seu planeta para o satélite mais próximo, depois para os planetas do seu sistema solar, depois conseguir colonizar um planeta tão longe de casa, em outro sistema solar… Você acha pouco?

— Ah, sei lá.

— “Ah, sei lá”… Você nunca sabe de nada. Só fica por aí se arriscando à toa. Vou falar de novo: nossa área é essa aqui, entre a montanha e o mar. Não temos autorização pra subir em montanha, pra passar da montanha pra lá, nem de entrar no mar e sair navegando por aí. É perigoso. O governo bate nessa tecla sempre: é perigoso. Tá entendido?

— Mas mãe…

— Tá entendido?

— Tá…

— Agora vai alimentar os bichos. Aproveita e vê como tá a fêmea prenha lá no estábulo. É capaz de já ter parido, e você não estava aqui pra ajudar.

— Mãe, tá longe ainda. Eu tô acompanhando o tempo, falta uma semana ainda… Uma semana lá de casa, que aqui é… Peraí… 47 dias? Não. 46. Faltam 46 dias pra ela parir.

— Tá vendo como você é? Você é estudioso, atencioso com os bichos, sabe cuidar deles, faz a ordenha, leva os machos para cobrir as fêmeas no tempo certo… Só precisa sossegar o facho.

— Tá bom, mãe.

— Te amo.

— Também te amo… Mas você não quer saber do que eu achei hoje?

— Não.

— Certeza? Cê vai ficar doida.

— Ai, ai… Vai, fala.

— Eu subi naquela montanha ali. Aquela pra direita, não a outra.

— Quê?! Até lá em cima?

— Mãe, relaxa. Quer saber a história ou não? Então… Subi lá. Tem um resto de caminho no meio da mata, acredita? Acho que o pessoal que veio aqui construir antes da colonização começou a fazer e depois desistiu. Então fui seguindo esse caminho, subindo, subindo… Cheguei lá em cima e tinha uma estátua lá!

— Estátua? Tipo estatueta?

— Não! Estátua grande, do tamanho de um prédio! Tombada de lado, coberta de plantas, já meio enterrada.

— Estátua de quê, menino?

— Aí é que tá, mãe! Eu acho que é uma estátua de bicho.

— De que bicho?

— Dos nossos, mãe! Do gado!

— Menino, quem é que ia fazer estátua de gado, ainda mais do tamanho de um prédio?

— Mãe… Essa estátua é antiga. Não foi a gente que fez. É de um bicho macho, com a cara peluda. Só que ele tá de roupa. E de braços abertos assim. Acho que a estátua ficava em pé no alto da montanha, devia ser impressionante.

— Mas quem fez uma estátua dessa, menino? Uma estátua de bicho vestido, do tamanho de um prédio? É piada?

— Mãe… Eu acho que isso é de antes da gente chegar, antes das sondas, dos satélites. E se foram os bichos que fizeram?

— Ah, pronto… Lá vem você com esse papo de novo.

— Mãe, eles são inteligentes! Cê não vê como eles olham pra gente? Às vezes eu chego no estábulo à noite, acendo a luz, e parece que eles estavam cochichando alguma coisa, sabe? Conspirando, sei lá.

— Seu pai não devia ter deixado você ficar com aquele de bicho de estimação. Bicho tem que ficar lá fora, não dentro de casa, dormindo na cama da gente. Olha no que dá: tá mexendo com a sua cabeça. Eles são bichos. É gado. Dão leite e carne pra gente. Mais nada. Você precisa entender isso.

— Mãe, mas a estátua…

— Eu não quero mais ouvir esse papo. Não era nem pra você ter ido até a montanha, muito menos ter subido. Não quero saber. E seu pai já falou: se você não seguir as regras aqui, vai voltar pra casa. É isso que você quer?

— Não…

— Então sossega e vai cuidar dos bichos. E traz aquele filhote que já tá gordinho, que hoje seu pai pediu pra comer uma carne macia.

O emoji “Man in Business Suit Levitating”

Foi ali, bem ali naquele balcão de bar, no fim de uma noite ruim, que Gustavo soube que estava apaixonado. Ela continuava com a história (“O nome dele é Walt Jabsco. Se você falar o nome, ele vai embora. Walt Jabsco. Não esquece.”), e ele fascinado mais pelo timbre da voz, pelo corte de cabelo assimétrico com uma mecha que caía sobre a testa e pendulava quando ela gesticulava, pelo nariz grande e um pouco torto para a esquerda, pelos olhos castanhos que brilhavam de álcool e entusiasmo pela lenda urbana do homem que flutuava.

— Você não tá nem escutando né, né?

— Claro que sim — disse Gustavo, só querendo que os lábios carnudos sem batom não parassem de se mover. — Esse cara… como é o nome?

— Walt Jabsco.

— Esse Walt aí, um cara branco, alto, de terno e gravata e chapéu fedora…

— Fedora não: pork pie. Igual o do Buster Keaton, mas de feltro.

— Esse cara de chapéu de Buster Keaton… Faz o quê? Visita as pessoas? Tipo uma Testemunha de Jeová? “Bom dia, você teria um minuto para a palavra de Walt?”.

— Você não leva a sério!

— Levo, claro que levo, Karina! Seriíssimo. Mas é que já bebi um pouco demais, estou com dificuldade de gravar os detalhes. Conta de novo.

— Esse cara. De chapéu pork pie. Terno completo. Óculos escuros. Meia branca, sapato preto. — ela enumerava cada item da descrição levantando um dedo da mão esquerda, e Gustavo se apaixonava mais — Walt Jabsco. Ok? Ele toma a forma que quiser.

— Tipo Super Gêmeos? “Forma de um balde de gelo!”

— Não, tipo… Forma de gente. Geralmente ele se apresenta como enfermeira, ou médico. Porque é assim que ele se alimenta, percebe? Escolhe um hospital e sai fazendo a ronda pelos quartos. Quando escolhe um paciente, ele fecha a porta e se transforma de volta em Walt Jabsco. Terno e gravata. Chapéu pork pie. Sapato preto, meia branca.

— Tipo Michael Jackson, mas em vez de fazer a inclinação antigravidade e Moonwalk, ele levita.

— Isso. E aí quando ele levita, pode esquecer. Se ele está levitando, é que não precisa mais se esconder de você. Chegou sua hora.

— O quê? A pessoa morre?

— Morre. Ele prefere pessoas não muito doentes, mas que também não levantem suspeitas. Todo mundo tem uma história assim, já reparou? “Minha mãe ficou dois meses no hospital, estava se recuperando, de repente teve uma piora de madrugada e morreu”. “Meu tio já estava bem, o médico falou que teria alta no dia seguinte. Infarto fulminante. Do nada.” Chamam isso de “a melhora da morte”. É como uma lâmpada daquelas antigas, incandescentes, que brilhavam mais forte logo antes de queimar. Mas não é isso. É…

— … Walt Disney.

— Jabsco.

— E por que ele pega esse pessoal e não quem já está mesmo nas últimas? Seria até um ato de misericórdia.

— Porque é disso que ele se alimenta, entende? Da… vitalidade da gente, eu acho. Pouca vitalidade, poucos nutrientes. O cara que está no hospital já se recuperando é comida de hospital: sem gosto, pouco calórica, mas nutritiva. O paciente desenganado, em coma, é um chuchu desidratado: não tem sustança. — Ela faz mesmo cara de quem mordeu um pedaço de chuchu seco, e o coração de Gustavo perde o compasso.

— Mas aí esse… esse SER aí passa a vida só na base da comida de hospital?

— Não lembro direito. É só uma lenda urbana, Gustavo. Eu só sei que tá muito barulho aqui e eu quero ir embora…

— Tá bom. Eu chamo um Uber pra você…

— Eu moro a duas quadras daqui. Você me acompanha até lá?

— Depende. Você vai me convidar para subir?

— Talvez… Mas não se empolga, tá? Tô bêbada e exausta. Vamos conversar mais um pouco e dormir. De acordo?

— Cem por cento.

Conversaram, sim, mais um pouco. E dormiram. Mas não só. Gustavo estava apaixonado e dormiu sorrindo. Acordou com o sol entrando pela janela. Virou-se para o lado. Estava só na cama.

— Karina?

— Aqui na cozinha! Você come ovos no café da manhã?

Preparando o café da manhã! Gustavo já imaginava os filhos que teriam. Levantou-se, vestiu as calças, foi até a cozinha.

— Eu normalmente acordo sem fome, mas hoje eu poderia comer um boi.

— Eu também. Falando em fome, lembrei o resto da história do Walt. Ele é tipo o Renfield… Cê leu Drácula? Ele é que nem o Renfield, que só come rato, mosca, aranha. Assim é o Walt com pacientes de hospital. Só que isso não basta, né? De vez em quando bate a fome de verdade, e ele precisa de uma refeição completa. Você já fez dieta? Sabe quando você tá há duas semanas só na saladinha de alface e peito de frango grelhado? De repente você PRECISA de um doce, ou de uma lasanha, ou de churrasco. E aí não tem quem te segure, e é por isso que dieta não funciona. Bom, é assim com o Jabsco. No dia que bate a fome, ele precisa encontrar uma refeição decente, daquelas para se esbaldar.

— A não ser que a pessoa fale o nome dele.

— Exato. Aí ele vai embora. A NÃO SER que ele já esteja levitando. Tarde demais. A família lamenta o morto. “Tão novo, morrer desse jeito…” E o Walt, depois de uma refeição dessa, fica igual uma sucuri que comeu um bezerro: passa uns dias só descansando, fazendo a digestão. Depois de um tempo bate uma fomezinha, ele escolhe um hospital e começa tudo de novo. Até o dia de furar a dieta.

— Esse papo tá me deixando com mais fome. Vou botar a mesa na sala enquanto você termina aí.

Gustavo pegou pratos, xícaras, talheres para levar até a sala. No caminho, deu um beijo na bochecha de Karina. Linda, linda.

— Minha barriga tá roncando, credo! — ele falou enquanto punha a mesa — tô parecendo o Michael Jackson assombrado depois de um mês de comida de hospital.

— Também tô morrendo de fome! — gritou Karina da cozinha. — Vem aqui ver se tá bom.

— Tô indo.

Gustavo foi até a porta e parou.

Um homem estava parado no meio da cozinha.

De terno e gravata. Um chapéu de aba curta e copa achatada, com uma fita em volta. Como o do Buster Keaton, só que de feltro preto. Sapatos pretos, meias brancas, óculos escuros.

— Muita fome…

A voz de Karina saiu da boca do homem. O homem. Como era o nome dele? Wagner? Walter? Um sobrenome eslavo ou coisa assim. Com G, ou J. Ou seria D? O nome dele. Gustavo precisava lembrar o nome dele.

— Wallter… Não, Walt! Walt… — à cabeça dele só vinha “Disney”.

Walt Jabsco sorriu e colou os braços aos lados do corpo. Pareceu crescer diante de Gustavo. Dois centímetros, cinco, dez. Não, não crescer.

Walt Jabsco estava levitando. E sorrindo.

(da história do emoji, contada aqui)